Direito, alteridade e transação tributária

política

Por Paulo Cesar Conrado – Domingo, 4 de dezembro de 2022

Um dos pilares do raciocínio psicanalítico revela um paradoxo aparente (ao menos para nós, habitués do direito), cuja compreensão, além de iluminar os caminhos que percorremos, pode nos auxiliar a entender e nos preparar para um futuro melhor.

Seria básico não fosse nossa mania, em direito, de contrapor e não de integrar: como nos definiríamos em nossa individualidade sem ao menos um par que nos desse visibilidade (e existência, por conseguinte)?

Em sua porção teórico-geral, o direito manobra essa ideia (ainda que sem dar crédito a outros domínios do conhecimento): não há espaço para o deôntico, assim nos ensina a teoria geral do direito, senão a partir da noção de intersubjetividade. Em outras palavras: ninguém está em relação jurídica consigo mesmo porque, em rigor, ninguém se reputa individualizável em si mesmo.

E se assim é para o direito em geral, assim também é, naturalmente, em todas as suas ramificações.

O direito tributário, o direito processual e a cópula dessas duas esferas — resultante no chamado direito processual tributário — são bases que, talvez em razão de nossa empiria, expressam com notável visibilidade as ideias apresentadas.

Tomemos o tributário, num primeiro momento.

Pondo em prática a alteridade que permeia a experiência humana, ele, o direito tributário, seria melhor compreendido (e pragmaticamente tratado) se, desfocado o objeto que o tipifica — o tributo —, passasse a ser enxergado com exclusiva atenção sobre os sujeitos que, no processo de mútua definição, se interindividualizam e passam a ter expressão não apenas jurídica, mas social (palavra tomada na intenção de “macrodimensionar” o fenômeno a que estamos nos reportando). Fisco e contribuinte: os sujeitos a que nos referimos, definidos e identificáveis em sua individualidade jurídico-tributária não por si próprios, mas em razão de sua contraparte, representam, nesse olhar, a tônica definitória do direito tributário.

O direito processual, ramo naturalmente complexo em suas estruturas, talvez seja de mais fácil compreensão quando focamos o fenômeno que lhe é próprio pelas lentes propostas — afinal, se o fato gerador das relações processuais é o conflito, a alteridade chega à beira da obviedade. A ideia do “outro”, muitas vezes apontada de forma negativa, em tom inadequadamente beligerante, salta às nossas vistas.

E assim deve ser, por derivação, quando falamos de processo tributário: fisco e contribuinte se requalificam, na instância processual, como autor e réu, não necessariamente nessa ordem, um e outro se definindo existencial e juridicamente.

Mas há um ponto em especial que nos mobiliza nessa história toda, justamente quando invadimos o campo da processualidade: sua verificação nos conduz, de ordinário, ao conceito de jurisdição, circunstância que busca a alteridade, complexificando-a.

Todo processo, sabe-se, movimenta três pontas subjetivas, o que, no campo tributário, nos direciona para além das figuras tipificadoras da obrigação de fundo, como se as pontas originárias — postas em linha reta — já não mais se identificassem mutuamente, senão por intermédio de um terceiro elemento, tal como que ocultando a alteridade primitiva.

Façamos o caminho contrário para aprofundar a compreensão: se o conflito gerador do processo é substituído por elementar oposta — o estado de convergência —, a alteridade inerente à experiência original volta a operar em linha reta. Fisco e contribuinte, usando outros termos, seguem se interdefinindo sem que para isso seja preciso triangularizar o fio dialógico que os une (ia) existencialmente.

Devemos entender, por essa breve incursão, que não deve ser o estado de processualidade, tampouco o exercício da jurisdição dali derivada, que legitima (rá) fenomenologicamente o direito (inclusive o tributário). O atravessamento dessa instância vem servindo historicamente muito mais para radicar a ideia de que as individualidades estariam em risco, um grande equívoco, à medida que, insistamos, só há individualidade (e seus predicativos, inclusive jurídicos), em razão do “outro” complementar, não do “outro” contraposto.

Fisco se define como tal, em suma, em razão do contribuinte; o contribuinte, idem.

Por isso que a busca pela jurisdição judicial em função de pressupostas dissidências não deve ser vista como caminho assecuratório das dimensões individuais, medida que, literalmente considerada, significaria uma espécie de “(des)existencialismo” de um e/ou outro daqueles sujeitos, um caminho indevidamente disruptivo da alteridade.

Mais do que ilógica, a associação do exercício da jurisdição judicial, sobretudo a tributária, à ideia de instrumentalização de proteção de um e/ou de outro daqueles sujeitos em sua dimensão individual dá ao exercente da atividade jurisdicional o aparente (e igualmente equivocado) papel de reescritor da realidade existencial, como se a triangulação do diálogo (fenômeno processualmente típico) estivesse apta a distorcer a possibilidade de diálogo em linha reta e a própria interdefinição “fisco-contribuinte”.

Mesmo historicamente reiterada, essa visão felizmente vem se diluindo — e assim deve seguir ocorrendo, assim pensamos e desejamos.

Sem descurar da imprescindibilidade da jurisdição judicial, não a devemos tomar como primeira, senão  como última ratio: fazendo-o, garantiremos maior sobrevida à dialogia em linha reta e, o que é mais importante, à visão (essencial) de que fisco e contribuinte não são elementos contrapostos em sua dimensão individual, senão complementares, inclusive e principalmente no que se refere às suas expectativas “particulares” — um e outro, relembremos, só existem individualmente quando se faceiam, nunca quando se escondem um do outro, colocando-se atrás do “pai-juiz”, o que pune e/ou protege.

Estratégias que promovem o concerto dessas ideias e que postulam a substituição da divergência pela convergência, para mais do que colocar o “pai” de lado — descomplexificando o fenômeno sócio-jurídico em diversos aspectos (inclusive o financeiro) —, ajudam a descortinar o que nunca deveria ter sido tirado de nosso campo visual: a experiência humana, inclusive a jurídico-tributária, não se define, essencialmente, por seu objeto, mas pelos sujeitos (e o plural aqui é de uso obrigatório) que a integram, não porque se contrapõem, mas porque se interdefinem, conferindo recíproca existência.

Um bom exemplo dessa espécie de estratégia é a transação tributária, instalada em diversas esferas políticas, mas que vem sendo mais intensamente comentada a partir da experiência federal.

Excelente caminho de preservação e respeito à alteridade, ela, a transação, põe de lado a mão judicial e tende a garantir, pelas concessões ajustadas em linha reta, não o interesse individual de um ou de outro, mas a justaposição, a amalgama, a cópula de interesses que, antes de isolados, só pode(ria)m ser legitimamente vistos em bloco interdefinitório.

Por isso o necessário impacto que ela, transação, gera no espírito dos envolvidos, uma espécie de retorno ao que de mais simples nos mobiliza em nossa experiência, o autorreconhecimento “de” e “a partir” do outro.

Uma palavra final: esse não é um “ensaio” de tom teórico — apesar das aparências. É uma exortação aos que criticam institutos como a transação porque desatende(ria)m interesses individuais aqui e acolá; uma exortação aos que se colam nessas ideias (sem recusar sua correção) para que meditem sobre uma possível forma adicional de se enxergar a questão, dando um passo atrás — necessário, em nosso modo de ver.

Fonte: Conjur

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