“Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, une tramas familiares e questões políticas e sociais

cultura

Texto: Leila Kiyomura

Arte: Gabriela Varão

Publicada em vários países, a história dos gêmeos Yaqub e Omar é marcada por conflitos, diferenças sociais e expectativas de amor e paz

O livro Dois Irmãos, de Milton Hatoum, lançado em 2000 pela Companhia das Letras, é apontado como um dos romances brasileiros mais lidos nas duas últimas décadas. Publicado nos Estados Unidos, Alemanha, Argentina, Espanha, França, Grécia, Inglaterra, Líbano, Portugal, República Tcheca e Argentina, ele recebeu em 2001 o Prêmio Jabuti – a maior honraria do mercado editorial brasileiro -, foi adaptado para história em quadrinhos por Fábio Moon e Gabriel Bá e se tornou tema de uma das minisséries mais vistas da Rede Globo de televisão (o que resultou num aumento de 600% nas vendas do livro). Neste ano, o romance entrou na lista de leitura exigida para o vestibular da Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), que seleciona candidatos aos cursos da USP, o maior vestibular do Brasil, com mais de 100 mil participantes.

“Minha primeira orientação para os estudantes é que leiam o livro. Se quiserem assistir à minissérie da Globo ou ler a adaptação em histórias em quadrinhos, tudo bem.  Mas sempre tenham em mente que o que se pede na Fuvest é a leitura do romance. Tenho certeza de que os estudantes vão gostar muito de mergulhar nessa história”, comenta o pesquisador Fernando Breda, que faz doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“Um dos grandes méritos desse romance é unir de forma bastante orgânica uma série de discussões políticas e sociais sérias, densas e complexas a uma boa fofoca, que traz briga entre irmãos, investigação de paternidade, disputa pelo amor da mãe e revelação de segredos de família”, observa Breda.  “Vários elementos clássicos do melodrama estão presentes no romance. Basta lembrar a primeira cena do livro, em que a mãe, em seu leito de morte, pergunta:  ‘Meus filhos já fizeram as pazes?’.”

Milton Hatoum - Foto: Divulgação

O escritor Milton Hatoum – Foto: Divulgação

No livro, o texto continua: “Ninguém respondeu. Então o rosto quase sem rugas de Zana desvaneceu”.

O livro Dois Irmãos, de Milton Hatoum, e a versão de Fábio Moon e Gabriel Bá para HQ – Foto: Divulgação

MInissérie na Rede Globo de Televisão – Foto: Divulgação

Vamos notar que, apesar dessa oposição ferrenha entre os irmãos, surgem, aqui e ali, certas linhas de continuidade e semelhança entre os dois.”

Os gêmeos do romance de Hatoum na HQ de Fábio Moon e Gabriel Bá – Foto: Divulgação

Breda explica que o enredo traz basicamente os dramas e histórias de uma família de origem libanesa que vive em Manaus, no Amazonas. “Essa família segue um modelo bastante tradicional, digamos assim. É formada por um pai, Halim, uma mãe, Zana, e três filhos: Rânia, a única filha mulher, e os dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar. Os dois, além de darem nome ao romance, são também duas personagens que estão eternamente em conflito. Esse conflito tem origem no tratamento que cada um dos gêmeos recebe da mãe. Omar, o caçula, é tratado como mais frágil e acaba ganhando a preferência da mãe, de modo que a disputa com Yaqub pelo amor materno vai aumentando gradativamente ao longo do romance.”

Cena da família na versão de Fábio Moon e Gabriel Bá – Foto: Divulgação

Na juventude, os dois irmãos disputam também o amor pela mesma menina, Lívia. “Uma briga que faz com que Omar deixe o rosto de Yaqub ferido.”

O professor alerta os estudantes/leitores que, apesar da oposição ferrenha entre os irmãos, há linhas de continuidades e semelhanças entre eles. “Um é mais sisudo e sério. O outro, mais despojado, festeiro. Ambos são fisicamente quase idênticos e, em termos de comportamento, compartilham posturas extremamente patriarcais em vários sentidos. Vamos notar, então, que apesar dessa oposição ferrenha entre os irmãos, surgem aqui e ali certas linhas de continuidade e semelhança entre eles.”

O livro insere uma camada a mais de complexidade nessa história. Como isso se dá? O narrador conta essa história como uma forma de entender sua identidade e sua própria vida, porque ele também é personagem, parte dessa família.”

O leitor vai sentir e estranhar a presença do narrador, que vai se revelando como protagonista. “Digamos que o livro insere uma camada a mais de complexidade nessa história. Como isso se dá? O narrador conta a história como uma forma de entender sua identidade e sua própria vida, porque ele, além de personagem, faz parte dessa família”, observa Fernando Breda, que destaca tal questionamento:

Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe.”

Essa criança que se sente esquecida dentro do barco é Nael, o filho de Domingas, uma indígena retirada da terra onde nasceu e criada num orfanato cristão. Breda explica:  “É verdade que até existem relações afetivas envolvidas nas trocas entre Domingas e os membros da família, mas ela está naquela casa acima de tudo para trabalhar, em condições que, por sinal, parecem bastante próximas de uma escravidão. Outra surpresa é que o narrador é filho bastardo de um dos gêmeos. Seria Omar ou Yaqub?”.

Outra questão interessante que Breda destaca em sua análise é que a Manaus do livro está integrada a uma dinâmica mais ampla da vida social brasileira – ainda que com suas especificidades. “O narrador fala do crescimento de Manaus, feito à base da pura cobiça de dinheiro, sem a organização estrutural da cidade. O que acarreta uma série de problemas sociais. E sintetiza: ‘Manaus cresceu assim: no tumulto de quem chega primeiro’.”

O pesquisador Fernando Breda – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Em outro momento, o narrador faz uma comparação entre a inauguração de Brasília e a vida cotidiana de Manaus. Descreve:

“Noites de blecaute no norte, enquanto a nova capital do País estava sendo inaugurada. A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como um sopro amornado. E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor, dissolvia-se no mormaço amazônico.”

Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava. Uma só. O perdão…”

O conflito de Nael, buscando nas frestas do cotidiano, espiando e acompanhando o comportamento da família, dos irmãos, inquieta também o leitor. Nael vê Yaqub segurando carinhosamente a mão de sua mãe. O estudante bem-sucedido da Escola Politécnica da USP seria seu pai? Mas Domingas, antes de morrer, conta que foi estuprada por Omar. Nas últimas linhas do romance, o narrador, ao observar o gêmeo que violentara a mãe, desabafa: “Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava. Uma só. O perdão…”.

Fernando Breda conclui: “Tomar contato com essa história, para além do prazer da leitura, é também uma forma de tomar contato com as angústias de uma personagem que tem que lidar com os conflitos de sua própria história e que, na articulação dessa série de problemas, nos permite ver questões que tocam a gente como um todo, já que tratam de feridas abertas na nossa história coletiva”. Breda reflete: “Nesse sentido, talvez, nós, leitores, sejamos como o narrador, um observador pelas frestas. E, quem sabe, a partir do que lemos, temos uma oportunidade de pensar e repensar nossa própria história de vida, entendendo nossas origens, nossas identidades, e vermos que elas também estão em articulação com as questões históricas e sociais que nos atravessam”.

Fonte: Jornal da USP

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