Por Lucas Scatolini – Sexta, 6 de maio de 2022
A escassez de remédios é a nova face da crise brasileira. O drama começou em janeiro, nos hospitais. Em diversos estados, faltam medicamentos – desde os básicos até os de alta complexidade. A rede hospitalar não dispõe de até 134 itens distribuídos pelo ministério da Saúde. Na lista estão, por exemplo, o micofenolato, para prevenir rejeição em transplante de órgãos; a alfaepoetina, que combate anemia; e o ribavirina, empregado contra a hepatite C. Nas últimas semanas, foi a vez das farmácias. Antibióticos infantis estão ausentes, no período de maior incidência de doenças respiratórias nas crianças. Em todas as farmácias consultadas pela reportagem da Folha, em São Paulo, houve relatos de falta de medicamentos usados, por exemplo, para tratar pneumonia, otite e amigdalite. O problema tem sido reportado nos jornais e TVs. Mas eles não falam das causas – estreitamente ligadas ao declínio da indústria farmacêutica no Brasil e à consequente dependência em relação a insumos importados.
A quebra na logística de importação, causada por eventos externos como a guerra na Ucrânia ou o lockdown na China foi o gatilho, afirmam sindicatos de a hospitais. Tornou-se impossível adquirir certas matérias-primas essenciais. Mas por que o Brasil não as produz?
As causas são antigas e estruturais. Após um período de expansão até o final dos anos 1980, a indústria brasileira em geral regrediu, a partir de então. Entre 1986 e 2020, o peso da produção fabril no PIB despencou de 27,3% para 11,3%, segundo o Instituto de Estudos sobre o Desenvolvimento Industrial (IEDI). Mas no setor farmacêutico o declínio foi ainda mais rápido. À abertura comercial somou-se a introdução da Lei de Patentes (1997), que permitiu o domínio do mercado brasileiro por multinacionais que não pesquisam e preferem importar que produzir no país. O mesmo IEDI relata: o Brasil, que em 1980 produzia 50% dos fármacos de que precisa, viu este percentual reduzir-se a 5% hoje.
Sob o governo Bolsonaro, foram adotadas medidas que ameaçam eternizar o problema. Segundo um levantamento da Repórter Brasil, os investimentos do governo no setor farmacêutico caíram 36%, em 2019. O BNDES foi quem mais cortou: foram aplicados R$ 87,5 milhões em 2019, ante R$ 370 milhões em 2018 – o menor investimento do banco no setor desde 2001. Por isso, crescem os gastos com importação de remédios, vacinas e matéria prima para a produção de medicamentos. Em 2019, a balança comercial do setor atingiu um recorde negativo de US$ 6,9 bilhões. Além de investir menos, o governo reduziu a compra de medicamentos por meio do programa de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) – essencial para estimular a alta tecnologia e incentivar a produção nacional de matéria-prima para remédios.
Onde está o problema pode residir também a alternativa. O economista Carlos Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, desenvolve há anos a hipótese de um novo padrão de desenvolvimento industrial, em que a Saúde teria papel decisivo. A reindustrialização brasileira, pensa Gadelha, pode ser facilitada se houver decisão política de oferecer à população serviços públicos de excelência.
Um SUS fortalecido e ampliado pode ser, por exemplo, um enorme incentivo a uma indústria de medicamentos, equipamentos e instalações hospitalares, material de diagnóstico e instrumentos. As encomendas de um sistema de Saúde Pública responsável por atender a 210 milhões de pessoas podem produzir um enorme impulso – se houver decisão política de estabelecer produção autônoma e pesquisa no país. Em torno dela surgirão, naturalmente, dezenas de milhares de ocupações, muitas delas de alta qualificação. Por enquanto, o país parece prostrado – e a ausência de dipirona nas farmácias, que obriga idosos a longas peregrinações em busca do remédio, é um retrato de seu retrocesso.
Fonte: outras palavras