Expressões usadas pelos brasileiros carregam rastros da escravidão

Brasil

A tarde – A coisa tá preta”, “boçal”, “criado mudo”, “morena (o)”, “mulata (o)”, “denegrir”, “lista negra”, “inveja branca”. Talvez você não saiba, mas estes são alguns dos termos racistas que muitos de nós, brasileiros, utilizamos em nossos diálogos diários. Infelizmente, por estarem enraizados em nossa cultura, estas expressões, algumas delas até bem óbvias, são ditas com tanta naturalidade por boa parte da sociedade.

A doutora em linguística e professora de língua portuguesa Fernanda Cerqueira explica que essa linguagem foi sendo construída ao logo dos mais de 350 anos de escravidão, tendo como base a premissa de que pessoas não brancas, em todas as suas especificidades, eram interiores às brancas.

“No caso do Brasil, mais especificamente, o país experienciou mais de 350 anos de escravidão, os quais foram legitimados pela compreensão racializante de que pessoas não brancas seriam inferiores às brancas, de modo que pessoas negras e indígenas, no empreendimento colonial, sofreram os impactos dessa ideologia fortemente difundida por religões de base judaico cristãs, sob alegação de que negros não possuiam alma, e por abordagens supostamente científicas como a eugenia, segundo a qual pessoas negras seriam desprovidas de capacidade cognitiva”, expõe a doutora.

“Assim, casos como denegrir, reduzir à condição de negro; mulata, mulher negra de pele clara cuja origem interracial é associada à origem do animal mula, o qual, por sua vez, é um animal híbrido, fruto do cruzamento do asno macho com a égua; doméstica, que remete ao processo de domesticação imposto a animais criados no âmbito da casa; nigrinha, que embora significa, atualmente, mulher promíscua, na história da língua portuguesa já foi um uso concorrente em significado com negrinha; ou barriga suja, utilizada como qualificação negativa de mulher, em família interracial, cujo filho nasce com cor de pele escura ou fenótipo marcadamente negroide; ainda são muito recorrentes no português brasileiro, embora, no imaginário coletivo, sejamos uma ‘democracia racial'”, completa ela.

Para Fernanda, essas expressões fazem parte de um contexto discriminatório, de um racismo estrutural e institucional que, a todo instante, tenta legitimar a incapacidade dos negros em estarem em determinados locais de poder. Nesse sentido, a cor da pele, as características negroídes e a estética são preponderantes e, muitas das vezes, determinam quais posições os negros devem ocupar na sociedade.

“Já utilizei alguns termos racistas por falta de informação. E isso acontece com a maioria da população brasileira. E nós baianos, que somos a maioria negra, usamos esses termos e terminamos sendo racistas com nós mesmos. Então, diante dessa situação, se torna um ato falho com a causa negra e terminamos agindo como os não negros. A gente tem que trabalhar em cima de ação social e educação para acabar com isso”, relatou o cinegrafista Jonathas Costa, 30.

O psicólogo Matheus Santana afirma que estas expressões, para além do racismo e da depreciação dos negros, também exercem uma forte influencia na saúde mental dessas pessoas. “Essa forma de se comunicar pode contribuir diretamente na construção da autoestima e para o surgimento de crenças disfuncionais, que são percepções errôneas de si mesmo e do mundo e, a depender de como elas se estruturam, podem se enraizar e surgir em situações do nosso dia a dia em formato de pensamentos automáticos, como os pensamentos de rotulação: atribuindo traços negativos que englobam as pessoas completamente e influenciar no sentimento de menos-valia, que é a sensação de ser um sujeito de menos valor”, explica Santana.

“Quando criança, sofri racismo sem saber. Na escola, os colegas sempre diziam que eu tinha cabelo duro, que era preto, negão. Em 2014, sofri racismo no lugar onde trabalhei como barman. Dois clientes brancos me chamaram e, quando me aproximei da mesa, falaram: ‘pretinho, chega aí! Descubra o nome daquelas meninas branquinhas que estão ali’. Não respondi porque só tinha três meses trabalhando, deixei para lá. Mas fiquei com raiva, chateado, mas por medo de retaliação, não fiz nada. Só quem é negro sabe o que é preconceito e racismo. E isso nos afeta psicologicamente”, relatou o cinegrafista.

Tanto o psicólogo quanto a doutora em linguística defendem que a saída para eliminar os termos racistas dos diálogos cotidianos é usar de bom senso e refletir sempre sobre o uso dessas expressões, tão corriqueiras, mas que geram muitos prejuízos. “Uma boa estratégia para lidar com essa situação é ampliar a consciência sobre o sentido dessas palavras e refletir de maneira crítica sobre o conteúdo que essa palavra tenta expressar. Um bom exemplo é o termo “cabelo ruim”, utilizado geralmente ao categorizar cabelos não lisos e depreciar os cabelos afro. Ao refletir sobre o conteúdo desse termo racista, podemos começar a pensar: Para quem esse cabelo é ruim? Por que para essas pessoas esse cabelo é ruim? Que fatores me influenciam para acreditar que isso faz um cabelo ser ruim?”, exemplifica Matheus Santana.

“Logo, é importante que sejamos estimulados a refletir sobre o uso que fazemos da língua e como esse uso contribui ou não para uma sociedade mais democrática. Assim, é fundamental que pensemos tanto sobre o uso de termos e expressões historicamente racistas, quanto que possamos refletir sobre nossas práticas”, conclui a professora Fernanda Cerqueira.

FALA POVO

Juciara Nogueira – funcionária do lar

“Eu falava alguns desses, mas não sabia o significado. Inclusive, dizia que era “doméstica” com muito orgulho. Agora, já não vou mais falar”.

Jacinara Silva – estudante de fisioterapia

“Eu usava vários termos desses como : ‘Vou dormir que amanhã é dia de branco , morena , da cor do pecado , entre outros termos . Alguns eu nem conhecia como , ‘ estampa étnica’ e nem sabia que eram racistas . Agora, que já sei , vou me policiar e não falarei mais pois , agora sei que são termos ofensivos para muitas pessoas e não devemos perpetuar o racismo estrutural”.

Andrea Carvalho – contadora

“Soube pouco tempo atrás, que esses termos eram racistas: mulata e doméstica. Têm termos que estão tão entranhados, que a gente nem percebe, na verdade”.

Simone Oliveira –  Tecnóloga em logística

“Já sabia de alguns termos. Mas o cabelo r ui m, passei minha infância e adolescência usando esse termo e acreditando, de verdade, que cabelos cacheados e crespos  eram ruins. Hoje, não uso mais esse termo porque entendi que não existem cabelos ruins, existem tipos de cabelos diferentes, inclusive, passei a me aceitar”. 

Augusta Santos – Enfermeira

“Existem alguns termos que uso até hoje. Realmente, alguns são pesados. Antes, não me incomodava, mas, diante da forma em que é usado, acaba sendo agressivo! Terei que rever os meus conceitos”.

Shirlene Apolinário – Pedagoga

“Alguns termos não conhecia a real definição, tipo criado mudo. Hoje, procuro não falar esses termos. Fico me policiando, e não me deixar essas raízes culturais erradas permanecer na minha vida.Temos que lutar muito para acabar com todos esses termos que machucam e tanto fazem pessoas sofrerem”.

Beatriz Barreto – Estudante de arquitetura

“Já conhecia alguns  e os usava, mas sem saber a história.  Não vou usar mais e vou informar as outras pessoas que esses são  termos racistas”.

CONFIRA ALGUNS TERMOS RACISTAS

A COISA TÁ PRETA – Quando querem dizer que algo é perigoso, desagradável, negativo, difícil. Associam algo ruim ao preto, que na visão racista, não é pode ser algo bom. 
INVEJA BRANCA – Passa a ideia de que o que é branco é positivo, é bom. Levando a crer que o que é  preto  é ruim?
CRIADO MUDO – Era o escravizado ou criado que ficava em pé e em silêncio, ao lado da cama dos ‘senhores’ durante a noite, geralmente segurando água e objetos para servi-los.

DENEGRIR – Quer dizer “tornar negro”. Apresente a ideia de que tudo  associado ao negro é negativo, é ruim.  MERCADO NEGRO / HUMOR NEGRO / LISTA NEGRA – Tem o mesmo significado de denegrir.
MEIA TIGELA – Quando o escravizado cumpria sua função, ganhava uma tijela cheia de comida. Quando não, recebia a tijela com menos comida, ou seja apenas a metade, o que levou a utilização do termo“meia tigela”.
FEITO NAS COXAS – Na época da escravidão, os negros moldavam as telhas usadas nas casas dos ‘senhores, nas próprias coxas e como tinham os corpos diferentes, as telhas não ficavam iguais, com o mesmo formato e, por isso, estariam ‘mal feitas’. 

MULATA – A palavra faz referência a “cor de mula”. Ou seja, compara uma pessoa negra a um animal. CABELO RUIM / DURO / PIXAIM – Classifica o cabelo afro, o cabelo crespo e o cacheado como sendo algo ruim.
NÃO SOU TUAS NEGAS – À época da escravidão, as mulheres negras eram propriedades dos homens brancos, eram submissas a eles. O termo, além de racista, é machista, dá a ideia de que as mulheres devem se submeter a vontade dos homens. PRETO DE ALMA BRANCA – Tentativa de elogiar uma pessoa negra, mostrando que, por ser ‘boa’, ela se assemelha a uma pessoa não negra. É um negro “diferenciado”.
NHACA
-Inhaca é uma Ilha de Maputo, em Moçambique, onde vivem até hoje os povos Nhacas, um povo Bantu. Aqui no Brasil, usam o termo inhaca para dizer que alguém está com odor corporal, e assim  faz relação a um povo preto.

BOÇAL – Comumente usado para chamar alguém de ignorante, sem conhecimento. O termo é uma referência ao negro escravizado recém-chegado ao Brasil e que não sabia falar o português.
DOMÉSTICA – A palavra, usada hoje para retratar secretárias do lar, vem do termo “domesticado”, que é tudo aquilo que o homem pode domesticar, incluindo animais. Era usado para classificar as escravas negras que trabalham para os senhores e eram “domesticadas” através de torturas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *