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Hino da atlética de medicina da Unisa que fala em enfiar dedo na vagina e ‘entrar mordendo’ é apologia ao estupro, diz especialista

Brasil

Alunos da mesma universidade foram gravados nus e simulando masturbação durante jogo de vôlei feminino em campeonato universitário em SP. Promotora de justiça afirmou que os estudantes são ‘forjados em ambiente que se pautam pela discriminação de gênero, expressa na forma de hinos que cultuam o estupro’.

Estudantes do curso de medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa) ficaram pelados e simularam uma masturbação durante um jogo de vôlei feminino de um campeonato universitário.

O caso ocorreu em abril, no torneio Calo 2023, em São Carlos, no interior do estado, mas ganhou repercussão no domingo (17), após um vídeo de repúdio ao ato viralizar nas redes sociais.

  • O hino da atlética de medicina da Unisa fala em “enfiar o dedo” na vagina e “entrar mordendo”;
  • No vídeo acima, estudantes participantes de diversas modalidades esportivas cantam a música de forma fervorosa;
  • Um dos versos da composição diz “na rima do pudendo”;
  • Pudendo é o termo médico que designa a fissura formada pelos grandes lábios da vagina;
  • O hino também foi cantado em um ato solene de uma turma de medicina da Unisa;
  • O conteúdo está publicado nas redes sociais como sendo a colação de grau da 48ª turma, formada no primeiro semestre de 2021;
  • Durante o evento, que aconteceu na Sala São Paulo, uma graduanda entoou o hino com a ajuda dos colegas;
  • Logo em seguida, todos fizeram o juramento de Hipócrates, que é considerado o pai da medicina ocidental;
  • Veja a letra completa:

“Xá! Vasca!
Xá! Vasca!
Xavasqui! Xavascá! Xavasqui e acolá!
Enfia o dedo nela que ela vai arreganhar!
O quê? Arre-ga-nhar!
Na rima do pudendo 
[termo médico que designa a fissura formada pelos grandes lábios da vagina]
Eu entrei mordendo!
É a Med Santo Amaro que está te fodendo!
Medicina! Santo Amaro! Ôoo!”

A composição, entoada por estudantes durante jogos universitários, pode ser considerada apologia ao estupro, segundo análise de Ana Paula Braga, advogada especializada em direitos das mulheres. “Especialmente por conta desses dizeres horríveis que estão escritos aqui”, destacou.

“Infelizmente, manifestações de degradação das mulheres são muito comuns nessa cultura universitária, especialmente com esse conteúdo de caráter sexual. Isso ainda é muito naturalizado, isso até faz parte do que a gente chama da cultura do estupro. É visto como brincadeira, como algo que não teria tanta relevância, como momentos de distração, mas, na verdade, não é bem assim”, explicou a especialista.

g1 procurou a Unisa para saber se a universidade tinha conhecimento da música e se, em algum momento, estudantes foram penalizados pela composição, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.

Ana apontou que, tanto a prática de simular masturbação quanto o ato de cantar o hino, são mensagens que passam uma visão problemática de subordinação das mulheres e que, em última instância, acaba levando para uma cultura de violência.

“As pessoas também falam quando olham para isso é ‘Ah, mas as próprias mulheres também estão cantando’. As mulheres também reproduzem essa misoginia, às vezes, até inconscientemente, sem saber, ou muitas vezes porque a pessoa que não participa disso acaba tendo suas retaliações no âmbito social. Os jovens querem se integrar e acabam participando desse tipo de coisa”, afirmou Ana Paula.

A advogada também falou que punições administrativas podem ser pensadas para estudantes e atléticas. Ela citou o caso da própria universidade: “Antigamente, havia muitas músicas desse teor. Depois de um tempo, quando o pessoal foi tomando consciência, foi convencionado que não seria mais aceito. As atléticas que participassem poderiam ser expulsas”.

Hino misógino e indícios de importunação sexual

“Este hino parece bem misógino. O que assusta é o fato de que a medicina é uma ciência ligada ao cuidado, portanto estes atos causam um espanto de que nós, mulheres, seremos tratadas por estes futuros médicos”, afirmou ao g1 a promotora de justiça Fabiana Dal’Mas.

“Será que este ambiente discriminatório — com hinos que cultuam violência contra as mulheres, as publicidades discriminatórias em festas — poderá ser apto a criar profissionais para cuidarem da nossa saúde?”, questionou ela.

Para além da responsabilização criminal, a promotora, que também preside a Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica, entende que os alunos deveriam ser envolvidos em atividades educativas em conjunto com toda a universidade em ações relacionados à Constituição Federal, ao princípio da igualdade, à não violência e à não discriminação contra as mulheres.

Fabiana também disse que a “elaboração de cartilhas, seminários e uma discussão mais profunda com a incorporação das questões de violência de gênero nas carreiras universitárias da medicina” deveriam ser matéria obrigatória. “O direito penal não é solução para misoginia. Educação, sim”.

Em entrevista à TV Globo, a promotora de justiça afirmou que, em relação à prática de expor os órgãos genitais no contexto em que os fatos aconteceram, há indícios do crime de importunação sexual.

“Essa atitude mostra uma postura misógina, violenta, de estudantes de medicina, que são responsáveis pelo cuidado. Isso é assustador. A naturalização da violência de gênero é um fenômeno — muitas vezes, as vítimas não se percebem vítimas”, disse em entrevista à TV Globo.

Silvia Chakian, promotora de Justiça de Enfrentamento à Violência contra a Mulher do Ministério Público de São Paulo, disse que os estudantes são forjados em ambiente que se pautam pela discriminação de gênero, expressa na forma de hinos que cultuam o estupro.

“A conduta aviltante desses indivíduos viola não somente a dignidade sexual de cada uma das estudantes que estava naquele estádio, o que já exige a responsabilização criminal, mas, também, de todas as mulheres, porque é evidente o dano moral coletivo”, apontou ela em publicação no Instagram.

“Alguém ali ainda é capaz de sustentar que esses indivíduos possuem qualquer atributo moral e de respeito humano para exercerem em pouco tempo a medicina? Médicos forjados em ambiente que se paute pela discriminação de gênero, expressa na forma de hinos que cultuam o estupro, publicidade sexista de festas, trotes com simulação de atos sexuais que objetificam mulheres, violência real ou simbólica, não são profissionais da saúde, são criminosos e precisam ser assim nomeados”, diz o texto.

Entenda o caso

Os alunos fazem parte do time de futsal da faculdade e estavam na plateia. Eles abaixaram as calças enquanto o time de vôlei feminino jogava contra a Universidade São Camilo. Nas imagens, eles aparecem encostando nas próprias partes íntimas.

Em nota, a Universidade São Camilo confirmou que o episódio aconteceu durante um campeonato no interior do estado, em abril.

“O Centro Universitário São Camilo informa que nossa Atlética do curso de Medicina não participa do Intermed. Porém, em abril deste ano participou de outro evento esportivo chamado Calomed, quando nossas alunas disputaram um jogo contra a equipe da Unisa. Os alunos da Unisa, saindo vitoriosos, segundo relatos coletados, comemoraram correndo desnudos pela quadra. Não foi registrada, naquele momento, nenhuma observação por parte das nossas alunas referente à importunação sexual. O Centro Universitário São Camilo apoia todos os nossos alunos e não compactua com quaisquer atos que possam atentar contra o pudor e os bons costumes.”

O Centro Universitário São Camilo alegou ainda que o caso pode ser enquadrado como atentado ao pudor, crime de notificação individual, mas que nenhuma aluna da faculdade registrou a ocorrência.

Já a Universidade Santo Amaro, procurada desde o último domingo pela reportagem, não se manifestou.

Após a repercussão, a União Nacional dos Estudantes divulgou nota pedindo a responsabilização dos estudantes envolvidos.

O Ministério das Mulheres também se pronunciou sobre o caso nesta segunda (18).

“Romper séculos de uma cultura misógina é uma tarefa constante que exige um olhar atento para todos os tipos de violências de gênero. Atitudes como a dos alunos de Medicina, da Unisa, jamais podem ser normalizadas — elas devem ser combatidas com o rigor da lei. Em parceria com o @min_educacao, o Ministério das Mulheres reforça seu compromisso de enfrentar essas práticas que limitam ou impossibilitam a participação das estudantes como cidadãs. Vamos seguir trabalhando para que as universidades sejam espaços seguros, livres de violência.”

Redes sociais

No final de semana, o influenciador Felipe Neto repostou o vídeo com as imagens cobrando resposta da Unisa.

“Olá @UnisaOficial – o Brasil está esperando o posicionamento de vcs quanto aos alunos de medicina q se masturbaram publicamente nos jogos universitários, cometendo crimes. A faculdade não vai se pronunciar? Não vai fazer nada?”, questionou.

Outros internautas também usaram as redes para cobrar posicionamento da universidade, que segue sem se manifestar. A reportagem do g1 procurou pela assessoria ao menos cinco vezes, sem retorno sobre o caso.

“Futuros médicos, estudantes da @unisa invadem a quadra durante um jogo feminino da Intermed, calças arriadas, expondo o pênis e simulando masturbação. Entendem porque não canso de falar aqui sobre a grave crise ética da profissão médica?”, escreveu uma jovem nas redes socias.

“O time de futsal masculino da Faculdade de Medicina de Santo Amaro se masturbou coletivamente num jogo de vôlei feminino. É isso. Como a gente pode estar falando de qualquer outro assunto nesse momento?”, questionou outra usuária da plataforma.

No perfil da atlética de medicina da Unisa, inúmeras pessoas cobraram uma resposta sobre o caso.

Nesta segunda (18), eles divulgaram uma nota que não esclarece o ocorrido, apenas informa que as imagens “não são contemporâneas” e diz que não representam “princípios e valores da atlética”.

Fonte: G1