Por Felipe Maruf Quintas – Quarta, 12 de maio de 2021
O ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), órgão vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, criado pelo Decreto nº 37.608, de 14 de julho de 1955[1], e extinto em 1964, logo após a instauração do regime militar, foi um dos mais importantes, senão o mais importante, centro brasileiro de altos estudos sociais e políticos no século XX.
Herdou a estrutura do IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política), fundado em 1953, em Itatiaia (RJ), por intelectuais cariocas e paulistas. O IBESP, que perdurou até a criação do ISEB, era responsável pela publicação dos “Cadernos de Nosso Tempo”, importante periódico de linha nacionalista[2].
O ISEB congregou eminentes intelectuais públicos brasileiros, como o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, o cientista político Hélio Jaguaribe, os filósofos Álvaro Vieira Pinto e Roland Corbisier, os economistas Ignácio Rangel e Ewaldo Correia Lima, e os historiadores Nelson Werneck Sodré e Cândido Mendes.
No decreto de criação do Instituto, constava que sua finalidade era “o estudo, o ensino e a divulgação das ciências sociais, notadamente da sociologia, da história, da economia e da política, especialmente para o fim de aplicar as categorias e os dados dessas ciências à análise e à compreensão critica da realidade brasileira, visando a elaboração de instrumentos teóricos que permitam o incentivo e a promoção do desenvolvimento nacional”.
Dessa forma, o ISEB definiu-se por um esforço simultaneamente teórico-intelectual e prático-político, caracterizado por um nacionalismo epistemológico e político-econômico, correspondente a uma dupla emancipação, intelectual e material.
Esses dois aspectos seriam, na concepção isebiana, reciprocamente relacionados, pois, em decorrência do viés existencialista adotado, entendia-se o ser humano como um ser-no-mundo, eivado de valores e de atribuições de significado, contextualmente situados e intencionalmente referidos aos outros e às coisas.
A realidade física e a realidade simbólica estariam amalgamadas pela própria condição humana, ao mesmo tempo física e simbólica, pertencente ao mundo material e capaz de estabelecer valores e significados de acordo com o contexto sociocultural envolvente. O ser humano, portanto, estaria inelutavelmente implicado em uma trama de referências em que “a consciência e os objetos estão reciprocamente relacionados” (Ramos, 1996 [1958], p. 72).
O mundo, porém, não seria o universal abstrato da humanidade, mas a nação, entendida como “um fundo comum de possibilidades, bastante amplo para servir de “mundo” a múltiplas liberdades” (Vieira Pinto, 1960, II, p. 141), como “a manifestação histórica concreta, enquanto estatuto político, de um traço existencial do ser humano” (ibid: p. 305). O ser-no-mundo seria, portanto, um ser-na-nação, cuja autonomia dependeria essencialmente da autonomia coletiva de toda a nação, tanto no plano da consciência quanto no da materialidade físico-econômica.
O ISEB, por conseguinte, buscou a elaboração de um pensamento e de uma consciência especificamente brasileiros, lastreados na concretude, nas questões e nos imperativos da realidade pátria. Superar-se-ia, assim, a alienação cognitiva frente aos centros hegemônicos mundiais, tanto capitalistas quanto socialistas. Não se tratava de recusar toda e qualquer contribuição teórica estrangeira, mas de impedir a sua assimilação acrítica e automática, de maneira a incorporá-la de forma mediada e seletiva conforme os referenciais brasileiros, tendo claras as suas diferenças para os europeus ou norte-americanos. O mais importante seria construir um conhecimento social genuinamente brasileiro, capaz de entender a realidade brasileira em termos próprios e de nela intervir apropriadamente para materializar, pelo desenvolvimento econômico, os valores de independência e soberania.
O desenvolvimento, por sua vez, enquanto processo histórico brasileiro, estaria fundamentado em um projeto estratégico de desenvolvimento autônomo do capitalismo nacional, baseado em recursos e fatores internos, independentemente de comandos exógenos. Superar-se-ia, então, o subdesenvolvimento, entendido como uma fase de alienação político-econômica aos centros exógenos. Isso não significava rejeitar completamente o capital estrangeiro, mas priorizar a formação do capital nacional e colocar o capital forâneo a serviço da internalização dos centros de decisão econômica, de modo a sustentar uma gradativa elevação do patamar técnico-científico-industrial e, portanto, da qualidade e da capacidade transformadora do trabalho. Tendo por pressuposto o caráter ontológico do trabalho na configuração das relações sociais, o desenvolvimento, desse modo, aperfeiçoaria e alargaria os horizontes existenciais da Nação.
A elaboração de uma consciência nacional seria, assim, aspecto correlato à consecução do desenvolvimento nacional. A substituição de importações de ideias e valores, pela consciência nacional, associar-se-ia à substituição de importações de bens e serviços, pelo desenvolvimento nacional, de maneira ao Brasil apropriar-se da sua própria realidade e projetar-se ao futuro como Nação soberana.
No âmago desse substrato intelectual comum, os pensadores isebianos formularam, em suas respectivas áreas de especialização, distintas elaborações intelectuais acerca do Brasil.
O sociólogo Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) foi o autor da chamada “redução sociológica”, um método de investigação sociológica com o intuito de “descobrir os pressupostos referenciais, de natureza histórica, dos objetos e fatos da realidade social” (Ramos, 1996 [1958], p. 71). Seria possível, de tal forma, situar cada objeto em seu contexto histórico-social específico e irrepetível, permitindo a compreensão do seu sentido e, também, viabilizando a operacionalização do conhecimento para a transformação coletiva.
Daí que Guerreiro Ramos tenha combatido o que ele chamava de “sociologia enlatada”, acriticamente importada e, portanto, desvinculada dos processos concretos da nacionalidade brasileira, e tenha alcunhado a sua sociologia de “sociologia dinâmica” e de “sociologia em mangas de camisa”, isto é, voltada para a resolução da questão central do Brasil, a superação do subdesenvolvimento.
Fiel aos clássicos da sociologia – Auguste Comte, Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber e Vilfredo Pareto -, todos eles comprometidos com reformas sociais, ele afirma o “propósito salvador e de reconstrução social” de toda sociologia autêntica (Ramos, 1957, p. 79). No caso de um país subdesenvolvido como o Brasil, isso significaria o comprometimento da sociologia com a industrialização do país, condição básica para a melhoria da qualidade de vida da população. Em suas palavras: “O trabalho sociológico em país periférico, muito menos do que qualquer outro, não pode permanecer descomprometido do processo de acumulação de capital” (Ramos, 1960, p. 100). Dessa maneira, a sociologia, para ser autenticamente brasileira, deveria estar a serviço do desenvolvimento nacional.
O filósofo Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) enfatizava a importância, para a concretização do desenvolvimento nacional, de uma consciência nacionalista, capaz de pensar a Nação a partir de si própria, como sujeito coletivo autônomo e não mais objeto colonial passivo. O desenvolvimento nacional não seria uma dádiva de forças externas à Nação, mas efetivação de uma ideologia e de um projeto nacionalistas.
Em suas palavras: “o processo do desenvolvimento nacional é função da consciência que a nação tem de si mesma. […] Não há esperança de dar ao país recursos que acelerem o seu desenvolvimento senão promovendo um movimento de clarificação ideológica, que explique o mecanismo histórico condicionador do novo processo social” (Vieira Pinto, 1960, I. p. 30-31).
A consciência tornar-se-ia nacional e, portanto, crítica e reflexiva, não através da pura especulação, mas pela incessante comunicação social com a massa popular e pela vinculação à realidade do Brasil enquanto país subdesenvolvido, irredutível aos modelos provenientes de países em estágio mais avançado de desenvolvimento. O genuíno pensamento nacional brasileiro deveria estar, enfim, imbuído do povo, do território, da história e da identidade singulares do Brasil. Assim, a consciência ganharia a objetividade necessária para se tornar uma práxis social, despindo-se da alienação colonial, preservadora do status quo subdesenvolvido.
O economista Ignácio Rangel (1914-1994) produziu uma das mais originais obras de história econômica brasileira.
Em sua concepção, a peculiaridade da formação econômica do Brasil residiria na chamada dualidade, isto é, no fato de que “Todos os nossos institutos, todas as nossas categorias – o latifúndio, a indústria, o comércio, o capital, o trabalho e nossa própria economia nacional – são mistos, têm dupla natureza, e se nos afiguram coisas diversas, se vistos do interior ou do exterior, respectivamente” (Rangel, 2012 [1957], p. 286).
Ele se dedicou, então, a investigar como os polos interno e externo da dualidade, correspondentes a formações econômicas distintas, interagiam entre si e modificavam-se no decurso histórico. A economia brasileira, nascida como uma economia complementar da portuguesa e europeia, acompanharia, em seu desenvolvimento, a história do capitalismo mundial, preservando, contudo, a posição periférica.
O Brasil, tendo sido descoberto no contexto internacional do mercantilismo, feito a sua Independência no do industrialismo e proclamado a República no do capitalismo financeiro, internalizaria essas formações mais avançadas passado o seu momento nos centros mundiais, cuja nova configuração econômica atuaria como polo externo da dualidade brasileira, influenciando a dinâmica interna do País.
Para que a posição periférica e subdesenvolvida fosse superada, urgia a prática do planejamento conforme o princípio da dualidade, isto é, considerando a heteronomia da economia nacional. Um maior ou menor grau de intervenção estatal ou de liberalização dependeria das distintas formações econômicas existentes no Brasil.
No contexto histórico em que Rangel escreveu sua obra, na década de 1950, ele advogava pela liderança do setor privado na industrialização substitutiva de importações e, ao mesmo tempo e como condição para isso, pela estatização do comércio exterior. Com efeito, o Estado, ao ocupar o papel de intermediário entre os polos interno e externo e, assim, distorcer os preços em favor dos setores exportadores nacionais, permitiria que “o mercado nacional, livre das incursões de uma economia mundial em crise, possa estabelecer seus próprios níveis de preço, refletindo com crescente fidelidade os custos de produção das diversas atividades e empresas, em nossas próprias condições tecnológicas” (Rangel, 2012 [1957], p. 348).
Rangel entendia, portanto, que a tarefa do desenvolvimento nacional não deveria ser nem puramente estatista nem puramente privatista, mas estatista e privatista ao mesmo tempo, com a utilização de diferentes instrumentos combinados, de acordo com a dualidade vigente, a fim de superá-la e homogeneizar o país em torno de um capitalismo autônomo. Daí a necessidade, no contexto histórico do chamado nacional-desenvolvimentismo, de um Estado comerciante que atuasse para aplainar o desnível entre os polos interno e externo da dualidade e, assim, fortalecer a indústria e a agricultura privadas nacionais.
O historiador e militar Nelson Werneck Sodré (1911-1999) escreveu copiosa obra em torno de assuntos tão variados como a história do Brasil, das Forças Armadas e da burguesia brasileiras, cultura nacional, a formação e a identidade do povo brasileiro, entre outros.
O fio condutor do seu pensamento é o antagonismo entre a Nação, identificada com o desenvolvimento industrial, a democracia social e a autonomização das relações econômicas e políticas do Brasil com base em um Estado e um empresariado privado nacional fortes, e, de outro lado, o imperialismo, identificado com a preservação da ordem primário-exportadora e latifundiária, herdada do colonialismo ibérico e atualizada pelo neocolonialismo sob a égide britânica e norte-americana.
Em suas palavras, o nacionalismo, como ideário e prática da emancipação brasileira do subdesenvolvimento e da subordinação aos centros exteriores, seria a essência da verdadeira modernidade nacional, criando formas de solidariedade social em prol do que une todos os brasileiros, ou seja, a Pátria, com todas as suas feições e propriedades materiais e espirituais historicamente definidas.
Em suas palavras: “O Nacionalismo surge da necessidade de compor um novo quadro conjugando interesses de classe, reduzindo-os a um denominador comum mínimo, para a luta em defesa do que é nacional em nós. É o imperativo de superar a contradição entre a burguesia nacional e a classe trabalhadora que adota o Nacionalismo como expressão oportuna de uma política.” (Sodré, 1958).
O cientista político Hélio Jaguaribe (1923-2018) identificou, como ossatura institucional do colonialismo, o chamado Estado cartorial, distribuidor de favores e privilégios e desprovido de uma visão nacional de longo prazo. A superação do colonialismo e a formação da Nação brasileira, de fato, seriam possíveis com o que ele chamava de Estado funcional, representativo de um empresariado nacional dinâmico e de uma classe média progressista, capaz, assim, de liderar uma estratégia de desenvolvimento industrial.
O desenvolvimentismo por ele propugnado não repelia uma participação relativamente elevada do capital estrangeiro, pelo contrário, o acolhia no interesse da sofisticação das cadeias produtivas internas. Em polêmica aberta contra muitos isebianos, contrários à política de atração, ainda que seletiva, de capital estrangeiro pelo governo Juscelino Kubitschek, Jaguaribe defendeu a posição governamental, estabelecendo, para isso, uma discussão teórica acerca da definição e da finalidade do nacionalismo.
Nesse sentido, ele diferenciou o “nacionalismo de meios” – que, em atitude defensiva e até mesmo “suicida”, visava restringir, ao máximo possível, a atuação estrangeira no Brasil – do “nacionalismo de fins”, que seria o verdadeiro nacionalismo, pois preocupado com o desenvolvimento do País, independentemente da origem dos recursos destinados à viabilização do crescimento industrial.
Em suas palavras:
“O nacionalismo que cabe designar de nacionalismo de meios exprime apenas uma das facetas do complexo colonial, tendente a erigir a própria condição em ideologia. Constitui uma das formas suicidas, observadas por Toynbee e por ele designadas de “zelotismo”, que uma sociedade subdesenvolvida pode assumir em seus contatos com outras mais adiantadas. O nacionalismo, muito ao contrário, só se realiza na medida em que reconhece seu fim, que é o desenvolvimento, e para isso deve utilizar-se de todos os meios apropriados, seja qual for a origem dos agentes, desde que, nas condições concretas, revelem-se os mais eficazes.” (Jaguaribe, 2013 [1958], p. 70).
A polêmica desatada em torno desse tema desdobrou-se em sucessivas crises no âmago do Instituto, culminando no desligamento dos quadros “entreguistas” – por exemplo, o próprio Jaguaribe – em 1960. Os desentendimentos em série, refletindo os impasses políticos do Brasil em tão conturbado período da história nacional, enfraqueceram a unidade e o papel político-intelectual do ISEB. A dissolução forçada do Instituto, com o início do regime militar, encerraria definitivamente um dos mais significativos centros de produção do pensamento nacional brasileiro. Mais do que a repressão militar, todavia, cabe destacar a desfiguração, o apagamento e o olvido deliberados da obra isebiana pela esquerda acadêmica, sobretudo da USP e do CEBRAP, que combateram todas as expressões nacionalistas brasileiras organizadas a partir de 1930.
À luz do fracasso da Nova República em salvaguardar a soberania e promover o desenvolvimento econômico e social do Brasil, o resgate da memória e do legado do ISEB são fundamentais para se recuperar o sentido de Nação, do qual carecemos para fazermos frente aos desafios domésticos e internacionais do século XXI. Ele, como os séculos anteriores, está sendo e será um século de nações e, portanto, de nacionalismo. Como os isebianos bem sabiam. Informações do site bonifácio.net
REFERÊNCIAS:
JAGUARIBE, Hélio (2013 [1958]). O Nacionalismo na Atualidade Brasileira. Brasília: FUNAG.
RAMOS, Guerreiro (1957). Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1957.
________________(1996 [1958]). A Redução Sociológica. Rio de Janeiro: Ed. Ufrj.
RANGEL, Ignácio (2012 [1957]). A Dualidade Básica da Economia Brasileira. In: Obras Reunidas, vol. 1. Rio de Janeiro: Contraponto, Centro Internacional Celso Furtado.
SODRÉ, Nelson Werneck (1958). Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro. Disponível em: https://horadopovo.com.br/nelson-werneck-sodre-o-nacionalismo-brasileiro-e-suas-raizes-historicas/
VIEIRA PINTO, Álvaro. Consciência e Realidade Nacional. 2 vol. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1960.
[1] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-37608-14-julho-1955-336008-publicacaooriginal-1-pe.html
[2] Algumas das principais publicações dos Cadernos de Nosso Tempo estão coligidas no livro O Pensamento Nacionalista e os “Cadernos de Nosso Tempo”, editado pela Câmara dos Deputados e pela Editora Universidade de Brasília em 1981, com seleção e introdução de Simon Schwartzman.