O juiz substituto e professor Marcos Scalercio, acusado de assédio sexual e estupro contra mulheres, deve voltar das férias e retomar seu trabalho nesta segunda-feira (5), informou ao g1 o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo, por meio de sua assessoria de imprensa. Ele nega os crimes e alega inocência, segundo a sua defesa (leia no final do texto).
Segundo o Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Estado de São Paulo (Sintrajud) , o magistrado foi transferido pelo TRT da 2ª Região do Fórum Trabalhista Ruy Barbosa, na Barra Funda, para outro fórum trabalhista na Zona Sul. Procurado para comentar esse assunto, o Tribunal não havia respondido ao questionamento do g1 até a última atualização desta reportagem.
O magistrado e docente Scalercio, de 42 anos, havia pedido licença do trabalho no tribunal após a reportagem publicar, no mês passado, que ao menos dez mulheres o acusavam de assediá-las sexualmente no curso Damásio Educacional, onde ele dava aulas, e dentro do seu gabinete no fórum trabalhista. Os relatos de assédios contra o juiz são de 2014 a 2020. As denúncias haviam chegado ao conhecimento do Me Too Brasil, que levou algumas delas às autoridades.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em Brasília, e o Ministério Público Federal (MPF), em São Paulo, analisam três dessas acusações: de uma aluna do cursinho, uma advogada e uma funcionária da Justiça do Trabalho. Os casos são apurados, respectivamente, nas esferas administrativa e criminal. Os dois procedimentos estão em sigilo e ainda não tem uma conclusão.
A previsão é de que o assunto entre na pauta do CNJ nesta próxima terça-feira (6), por exemplo, quando o órgão irá decidir se abrirá ou não um Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) contra o juiz.
As demais sete mulheres que acusaram o docente e magistrado não quiseram levar os casos à Justiça.
O Damásio Educacional, onde Scalercio era professor de direito no cursinho preparatório para concursos públicos e para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o desligou da instituição em agosto, após a repercussão do caso. O cursinho sempre negou, no entanto, que soubesse de relatos de assédio sexual envolvendo ele e alunas.
Com a divulgação do caso, o Me Too Brasil recebeu mais denúncias de assédio sexual contra o juiz e professor. Até a última sexta-feira (2), já tinham sido contabilizados um total de 96 relatos, seis deles de estupro. O movimento tem parceria com o Projeto Justiceiras. Os dois órgãos prestam assistência jurídica gratuita a vítimas de violência sexual e já encaminharam 62 casos para os órgãos responsáveis por apurar as denúncias, entre eles, o CNJ.
MP ouve vítimas de estupro
Segundo o Me Too, o perfil das novas vítimas também é de alunas do Damásio, advogadas e servidoras do TRT. Quatro dos casos de estupro foram encaminhados ao Ministério Público (MP) de São Paulo. As outras duas mulheres que disseram ter sido estupradas por Scalercio não quiseram levar as denúncias a frente.
“É importante alertar a todas as mulheres a importância de falar. São relatos muito doloridos, graves. Relatos de sofrimento. Relatos que causam muita repulsa em que ouve. É um tipo de violência insidiosa e perversa. Ela se vale da condição de vulnerabilidade dessas mulheres”, disse ao g1 a promotora Silvia Chakian, que ouviu algumas das mulheres. Ela integra o Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência (NAVV) do MP.
“Elas [as mulheres] tiveram muito de denunciar na época. Tiveram medo de serem prejudicadas dentro do meio jurídico. Tiveram medo de conseguir provar o crime. De ficarem desacreditadas. E não tinham noção de que isso estava acontecendo com outras mulheres; Agora se sentem mais amparadas e fortalecidas para isso”, falou Silvia.
A defesa de Scalercio não foi encontrada para comentar o assunto. Apesar disso, seus advogados sempre negaram quaisquer acusações de assédio sexual contra seu cliente. A própria Corregedoria do TRT chegou a arquivar por duas vezes três dessas denúncias contra ele.
‘Santinha ou safadinha’
Ex-alunas do Damásio Educacional usaram as redes sociais em agosto para dizer que, pelo menos desde 2016, já haviam procurado o cursinho e denunciado Scalercio por comportamento inadequado. Entre as queixas relatadas estavam convites do docente para sair com as estudantes e envios de mensagens inapropriadas com conotação sexual para as redes sociais delas.
Segundo as ex-alunas, quem recusasse as investidas do professor sofria retaliações no curso. O g1 conversou com algumas das mulheres.
“O professor Marcos Scalercio estava com conduta inadequada nas redes sociais, no caso, misturando a parte profissional com a pessoal, e isso estava me constrangendo nas aulas, em vê-lo aos sábados”, disse na terça (16) ao g1 uma ex-aluna do Damásio sobre a denúncia que ela afirmou ter levado ao conhecimento de um funcionário da secretaria do cursinho em 2018. “Ele pediu desculpas e disse que isso seria averiguado.” Mas a resposta nunca veio.
“Depois deixei o curso e fui para outro”, disse a ex-aluna, que contou não ter tido consciência à época de que havia sido vítima de assédio sexual. “Hoje sei que fui assediada por ele.”
Segundo a mulher, que se atualmente trabalha como modelo, Scalercio passou a procurá-la depois que ela postou uma foto do professor na rede social dela e o marcou, elogiando suas aulas.
“Ele me procurou no Instagram, passou o celular dele, e ali mesmo já começou dizendo coisas como se eu curtia beijos no corpo todo, perguntava se eu era santinha ou safadinha. Dizia que gostava de preliminares”, falou a ex-aluna. “Me sentia constrangida e invadida até pelo linguajar.”
O caso
As denúncias de assédio contra o juiz começaram em 2014, mas só vieram à tona em 2020, quando mulheres passaram a discuti-las na internet. Vítimas que não se conheciam começaram a citar o nome de Scalercio em pelo menos dois grupos fechados de discussão nas redes sociais voltados a concursos públicos para mulheres. Elas o definiam como assediador sexual.
Duas das três mulheres que decidiram levar à Justiça as denúncias de assédio sexual contra o magistrado relataram ao g1 e à TV Globo detalhes da abordagem, segundo elas.
“Ele ficava falando de me levar livros até a minha faculdade e um dia simplesmente apareceu. Entrei no carro dele e nós fomos numa cafeteria próxima ao local, quando ele tentou me agarrar”, afirmou uma delas, que foi aluna dele no cursinho Damásio em 2014.
Uma outra vítima, funcionária do Tribunal Regional do Trabalho, contou em entrevista ao g1 e à TV Globo que foi agarrada e beijada à força por Scalercio dentro do gabinete dele no Fórum Trabalhista Ruy Barbosa na capital, em 2018.
“Ele se levantou, veio perto da minha cadeira, se apoiou na minha cadeira e começou a tentar me beijar, me assustei e fui para trás com a cadeira. Mas ele forçava todo o corpo pesado nos meus braços, até que teve uma hora que ele fez menos força, e eu consegui me desvincular. Ele tentava me beijar e falava que ‘sabia que eu queria’ e, como não tinha câmeras no gabinete, eu podia ficar tranquila”, afirmou a vítima.
Mais denúncias
Uma advogada de 29 anos afirmou também à TV Globo ter sido estuprada por Scalercio. A mulher, que prefere não ser identificada, contou que procurou o juiz para aconselhamento profissional em 2017 e aceitou tomar um café com ele que, na época, atuava no Fórum Trabalhista na Barra Funda.
Ela afirmou que ele foi encontrá-la com o carro dele, mas ao invés de seguirem para uma cafeteria, o juiz a levou para um motel. “Ele me agarrou com muita força, ele não conseguia tirar minha roupa. Ele teve relações comigo à força e eu fiquei cheia de hematomas pelo corpo.”
Segundo Luanda Pires, diretora de relações institucionais do Me Too Brasil, o número de vítimas que acusam o magistrado por assédio pode ser maior. “A gente já sabe de muitas outras vítimas, que ainda não estão dispostas, não têm condições ainda de falar sobre, mas a gente já sabe de outras mulheres. A sociedade brasileira naturalizou esse crime, entendendo esses atos como ‘cantadas’.”
TST combate assédio sexual nos tribunais
Assédio sexual é crime no Brasil. Pode ocorrer em um contexto em que há relação hierárquica entre o agressor e a vítima, no qual ele a constrange, geralmente no ambiente de trabalho, seja usando palavras ou cometendo ações de cunho sexual, sempre sem o consentimento da pessoa, como um beijo ou um toque forçados, por exemplo.
Pelo fato de os membros da Justiça do Trabalho terem competência federal nas suas atribuições, eventuais violações cometidas por eles são apuradas por órgãos federais. Se for considerado culpado no âmbito administrativo, o magistrado poderá ser exonerado do cargo, suspenso, afastado ou advertido. No aspecto criminal, condenados por assédio sexual podem ser punidos com até dois anos de prisão.
Ainda no final de agosto, após a repercussão do caso envolvendo Scalercio, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), com sede em Brasília, instituiu a “Política de Prevenção e Combate ao Assédio Moral e ao Assédio Sexual”. A ação ocorrerá em todos os tribunais do TST e também no Conselho Superior da Justiça do Trabalho.
Fonte: G1