Por Paulo Fleury Teixeira
Votação sobre o porte da planta no STF não serviu para suscitar debate crítico na sociedade. É papel da Saúde Pública levantar argumentos e difundir dados para dissipar a névoa ideológica conservadora que encobre a questão. Por que continuamos parados?
Parece que toda a polêmica e mobilização em torno da votação do STF sobre a descriminalização de pequenas quantidades de maconha, realmente, não passou de uma agitação disfuncional, sem efeitos práticos positivos. Não havia e não há, ainda, um acumulado mínimo de consciência crítica e discernimento racional sobre o tema na nossa sociedade. Não era a hora, portanto, desta temática receber um tratamento sistêmico pelo Judiciário ou pelo Congresso nacional.
Não há uma base real para este tipo de ação agora, porque estamos no início de um acerto de contas com o fascismo, que não é apenas político, mas estrutural na sociedade brasileira, e porque estamos em um ano de eleições municipais. Trazer agora pontos muito impactantes na pauta de costumes e de direitos civis, serve como um palanque para a extrema direita e os oportunistas, que sempre se promoveram pelo escândalo nestas pautas. Agora as pautas progressistas dificilmente poderão avançar e, ao contrário, corremos o risco de revezes, de perdas reais nesta disputa ideológica e institucional, com consequências nefastas também no plano eleitoral.
O STF, contudo, pôs em pauta a descriminalização das pequenas quantidades, assim como fez com o tema do aborto, mais para atender ao timing de uma ministra que saía, do que pela dinâmica real da sociedade. Como era previsto, teve reação e os pedidos de vista vão se sucedendo. Já tem gente cravando que a votação não termina este ano. Mas isso nem importa realmente.
Você acredita que os esculachos, os flagrantes forjados, as prisões ilegais e as execuções sumárias, vão acabar? Vai haver desencarceramento dos presos por tráfico de maconha com pequenas quantidades? Hoje, eu não creio em nada disto, independente da decisão do STF.
É claro que sou a favor da liberação do porte de drogas, em geral, em quantidades suficientes para o uso pessoal. Parece realmente uma boa medida, de respeito e proteção aos cidadãos, às pessoas de bem que são usuárias de droga. E são muitas, nós sabemos disto, em todas as classes sociais. E é claro que também sou a favor da mais ampla liberdade de cultivo da maconha. Mas, num julgamento como este do STF, não se trata de uma questão de princípios, de uma questão ideológica, somente. Esta é uma questão social gravíssima, que atravessa a nossa sociedade, de cima abaixo, como um rio de grana, de sangue e de barbárie. Não será uma decisão limitadíssima, como esta do STF, que terá o condão de mudar efetivamente esta realidade.
Do mesmo modo, a reação do Congresso, com o avanço de uma proposta de PEC que criminalizará o porte de qualquer quantidade de drogas, também não deve mudar grandes coisas. Hoje isto parece muito mais um jogo de cena para barrar a votação no STF. Mas, mesmo que seja aprovada, também mudará pouco, ou nada, a realidade atual. De um jeito ou de outro, o escrutínio policial e judicial para determinar se se trata de uma situação criminosa, de tráfico, ou não, continuará sendo decisivo, em todos os casos. E, adivinha quem será liberado e quem será criminalizado pelo sistema?
Aqui no Brasil, a guerra contra as drogas nunca visou, nem jamais visará, o controle ou a eliminação do comércio e do uso das drogas ilícitas. Isto tudo é uma farsa que tem sentido apenas dentro de lógicas fascistas de terrorismo social, que são tão importantes nas sociedades fundadas em extrema desigualdade e violência social, como é a nossa.
Você duvida disso? Então considere as seguintes questões. Por que, em todos os finais de semana, acontecem, em todo o país, milhares de festas e baladas, de todos os tipos e para todas as classes sociais, com os endereços conhecidos, regadas a drogas ilícitas, livremente acessíveis? E, por que várias biqueiras de venda de drogas funcionam diuturnamente, há anos ou décadas, em pontos fixos, muito bem conhecidos, em todas as cidades médias e grandes do país? É óbvio que tudo isto só acontece porque a guerra contra as drogas aqui e, em geral, mundo afora, é uma farsa completa. As dezenas de milhares de mortes e as centenas de milhares de encarceramentos, assim como as toneladas e toneladas de drogas apreendidas, todo ano, tudo isto é parte de uma grande farsa que absolutamente não tem o menor intuito de barrar de fato a venda e o consumo de drogas ilícitas.
Os objetivos da necropolítica da guerra às drogas são outros e eles continuarão a ser perseguidos e atingidos, independente destas marolas que o STF e o Congresso estão fazendo. Sob a armadura moral, religiosa, jurídica e policial, a guerra às drogas opera na disputa de terras, na disputa de poder, na manutenção da hierarquia social e étnica e no controle e ordenamento dos comportamentos pessoais. A ideologia e as práticas da guerra às drogas constituem um instrumento muito eficiente de terrorismo constante sobre populações marginalizadas. Um instrumento útil e eficiente demais para ser facilmente descartado.
Faz-se, cotidianamente, um terrorismo extremo, absurdo, sobre os riscos e danos das drogas e sobre a altíssima periculosidade de se vender tais produtos. Neste ponto todos se escandalizam com tudo. Mas, muito poucos se escandalizam com o encarceramento e as mortes em massa que são impostos pela criminalização das drogas. Falsidade hipócrita, alimentada todos os dias, por um sem número de alcoólatras, de viciados em todo o tipo de droga e perversão, pessoas sem moral alguma, abusadores, pedófilos, ladrões, assassinos, todos enchem a boca para tocar o terror contra as drogas e os drogados. Difícil saber qual o mais pervertido, qual o mais degenerado, qual o mais dependente.
Ignorantes, idiotas. Como pode um alcoólatra falar mal de liberar a maconha? E esses viciados em cigarro, então? E esses dependentes de pílulas psiquiátricas? Vocês estão doidos. E doentes. E querem continuar impondo sua insanidade, suas doenças, sobre todos os outros.
É preciso que se diga também que os soldados que estão no combate nesta guerra, que põem a sua vida em risco, que sofrem danos reais, estão fazendo papel de bobo, enganados pelo sistema. Como pode alguém dar a própria vida, ou tirar a vida de outros, no combate à maconha, uma planta que certamente é muitas vezes mais segura do que o álcool e o cigarro, em que muitos deles são viciados, e também muito mais segura do que aquelas pílulas psiquiátricas que são empurradas para eles mesmos nos ambulatórios médicos?
Todo o sistema de combate às drogas e de controle dos drogados na nossa sociedade é uma farsa e você sabe disto. Todos sabem e fingem não saber. E uns, coitados, muitos, na verdade, vão morrer por isto.
Quem faz isto, quem cria e sustenta estas farsas, está sendo muito irresponsável. Que o Judiciário e o Legislativo naveguem nesta irresponsabilidade, que a sociedade toda faça isto, são condições ideológicas da realidade. Quem não poderia falhar neste aspecto e, principalmente, não deveria continuar perpetuando o erro, são os setores técnicos responsáveis, somo nós, da saúde pública. Nós sabemos, ou temos a obrigação de saber, com toda a certeza, que a guerra às drogas mata, incapacita e interdita centenas de milhares de vidas a mais do que as próprias drogas o fazem. Nós também temos a obrigação de saber que o maior peso em saúde pública, a maior carga em adoecimento e morte, é, de longe, devido às drogas permitidas e prescritas. E, por fim, nós temos a obrigação de saber também que a maconha carrega risco de saúde pública infinitamente menor que todas estas outras drogas. É nossa obrigação, portanto, trazer esta realidade ao debate e estabelecer critérios técnicos adequados, considerando os riscos inerentes a cada droga. O setor de saúde pública, é, obviamente, o único que pode e deve estabelecer parâmetros e critérios técnicos, de saúde pública, para a condução desta questão na nossa sociedade. Isto é matéria rigorosamente técnica e não podemos abrir mão disto. Mas, estamos sendo omissos e coniventes com políticas não científicas que levam à perda de dezenas de milhares de vidas todos os anos no nosso país.
A força ideológica desta questão e a névoa de terror moral e policial que ela carrega, nos cegam e imobilizam. De fato, o setor de saúde, quando veio a público, institucionalmente, se posicionar sobre o julgamento do STF, foi para condenar. Na área da saúde, até agora, foi apenas a ideologia fascista que se expressou publicamente. E é sempre assim. Deixamos a direita fascista se manifestar sem contraponto institucional e, muito pior, damos o endosso técnico institucional para toda esta excrescência. É a Anvisa quem estabelece que a maconha é droga de alta periculosidade e, portanto, ilícita, ao passo que o álcool, a nicotina e o citalopram, por exemplo, são liberados para venda sem restrições. Isto é um absurdo completo do ponto de vista médico-científico e está nas mãos do executivo mudar. Precisamos que a posição técnica, científica, médica, real, verdadeira, vença a farsa, a paranoia, a hipocrisia e o escândalo moral que imperam nos próprios órgãos técnicos voltados para o controle de drogas e no setor de saúde pública, em geral.
Fonte: Outra Saúde / Créditos: Smoke Buddies