Maus tratos e violência obstétrica como desafio para a epidemiologia e a saúde pública

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Estudos sobre desrespeitos e abusos/maus tratos/violência obstétrica durante gestação, parto e puerpério têm aumentado nas últimas décadas. Um desses estudos foi publicado em artigo, com participação da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). Desenvolvido com o objetivo de discutir e refletir sobre como questões relacionadas à definição e terminologia, mensuração e políticas públicas no Brasil têm dificultado a pesquisa da temática, assim como a mitigação desses atos. “A falta de estudos impacta a tomada de decisão em saúde, prejudicando a elaboração de políticas públicas adequadas”, apontam os autores. O primeiro problema abordado foi a falta de consenso em relação à terminologia e definição desse construto. “Essa condição provoca um efeito em cascata, com a utilização de instrumentos de aferição não validados que implicam falta de precisão e comparabilidade entre os estudos. Outra questão mencionada é a ausência de estudos explorando as consequências desses atos na saúde da mulher e do recém-nascido, configurando uma das principais lacunas sobre o tema atualmente”, segundo a pesquisa.

O estudo, de autoria de Tatiana Henriques Leite, Emanuele Souza Marques, Ana Paula Esteves-Pereira, Marina Fisher Nucci, Yammê Portella, e Maria do Carmo Leal,  considera que há muito o que se avançar com relação a pesquisas científicas envolvendo a temática de desrespeito, abusos, maus tratos e violência contra a mulher perpetrados pelos profissionais de saúde no ciclo gravídico puerperal. “A falta de consenso quanto à terminologia e à definição desse construto provoca um efeito em cascata, causando falta de precisão na estimação da magnitude desses atos, dificuldade de comparabilidade entre diferentes estudos e países (distintas definições e, consequentemente, distintas formas de mensuração) e escassez de estudos analíticos enfocando possíveis desfechos negativos desse problema para a saúde e o bem-estar da mulher e do recém-nascido.”

Para os pesquisadores, a ausência de estudos epidemiológicos causais sobre a temática impacta a tomada de decisão na área da saúde, uma vez que o conhecimento gerado influencia a elaboração de políticas públicas específicas para prevenção desses atos por parte dos gestores de saúde. De acordo com eles, diante das questões mencionadas, estudos futuros com foco na criação de um termo e de uma definição consensual na área e, por conseguinte, no desenvolvimento de um instrumento com boas propriedades psicométricas para avaliar situações de desrespeitos e abusos, maus tratos e violência obstétrica durante a gravidez, o parto, o puerpério e em situações de abortamento se fazem necessários.

O artigo faz referência aos  Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que reconhecem que o enfrentamento à desigualdade de gênero é de suma importância no combate às diferenças de gênero quanto a oportunidades de estudo, trabalho, renda, participação política, entre outras. Nesse contexto, a confrontação de todas as formas de violência contra a mulher se coloca como uma das temáticas a serem trabalhadas para atingir essa equidade.

O texto explica que a violência contra a mulher está inserida em dois tipos distintos de manifestação de violência: a coletiva e a interpessoal. A primeira contempla os atos perpetrados pelo Estado ou instituições, como violência e escravidão sexual durante guerras e conflitos, violência policial, terrorismo, entre outros. A segunda se refere à violência praticada por indivíduos com ou sem vínculo pessoal/íntimo com a vítima. Pode ocorrer dentro do domicílio ou na comunidade, e inclui violência doméstica (psicológica, física e sexual), coerção reprodutiva, assédio sexual, estupro, mutilação genital, entre outras.

De acordo com alguns pesquisadores do tema, sociedades cujas culturas aceitam e toleram a violência contra a mulher estão mais propensas a naturalizar esses atos, inclusive aqueles que ocorrem dentro dos serviços de saúde. Não obstante, publicações recentes têm demonstrado que muitas mulheres no mundo sofrem maus tratos, desrespeitos, abusos ou mesmo violência durante a gestação, o parto e o puerpério por parte dos profissionais de saúde. O mesmo é verdade para as mulheres em situação de aborto.

No Brasil, segundo estudos hospitalares realizados em 2011 e 2015, a prevalência nesses casos foi de 44,3%, e 18,3%, respectivamente. Devido a essa alta magnitude, desrespeitos e abuso, maus tratos e violência durante o parto são considerados uma grave forma de violência de gênero e comprometem os direitos humanos fundamentais das mulheres, além de ser um problema de saúde pública mundial.

Conforme o artigo, na última década, o interesse por estudar essa forma de violência durante o parto tem crescido, principalmente devido ao movimento feminista e aos grupos que buscam reivindicar os direitos individuais das mulheres, reforçando a sua liberdade e autonomia nesse momento tão especial da vida. O aumento da escolaridade das mulheres, a entrada no mercado de trabalho e a conquista de direitos sexuais e reprodutivos tornaram o cenário bastante favorável para ampliar a discussão, conclui o artigo.

Esse artigo foi publicado na edição de fevereiro de 2022 da revista Ciência & Saúde Coletiva. Os demais artigos da revista estão disponíveis aqui.

Fonte: FioCruz


 

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