Por Flavia Viella e Ludimila Zeger
Sexta, 12 de janeiro de 2024
O consumo de medicamentos que só podem ser vendidos com receita médica não é monitorado no Brasil há mais de dois anos. Em novembro de 2021, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável por esse monitoramento, suspendeu o Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC) devido a uma “instabilidade”.
Seja para aliviar dores crônicas, tratar problemas psiquiátricos ou formas graves de acne, esses remédios são controlados porque podem deixar sequelas graves e até mesmo matar. A lista é extensa e inclui opioides, antibióticos, entorpecentes, psicotrópicos, entre outros.
O problema parece não ter solução no curto e médio prazo, como sugere a nota da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) enviada à Sputnik Brasil , na qual a agência diz que “está estudando as soluções viáveis e necessárias para o restabelecimento do sistema”.
Mas o que essa lacuna de dados nacionais de prescrição e venda ao consumidor desse tipo de remédio representa, na prática, para a saúde pública do país?
Para tentar mensurar esse impacto, a Sputnik Brasil ouviu o médico sanitarista e ex-diretor-presidente da Anvisa Gonzalo Vecina e a farmacêutica e especialista em farmácia hospitalar (UFF) e saúde pública (ENSP/Fiocruz) Michele Costa Caetano.
Dentre as consequências imediatas dessa carência de informação, os entrevistados destacam o enfraquecimento de fiscalização mais eficaz para conter o consumo abusivo, a automedicação, desvios para uso ilícito e fraudes.
“A gente sabe que já existe venda de antibióticos sem receita em algumas farmácias. Imagine agora sem esse sistema?”, questiona Michele Costa. “Uma consequência imediata é a venda desses medicamentos sem receita”, opina a farmacêutica.
Vecina, que foi um dos idealizadores do Sistema Único de Saúde (SUS) e a primeira pessoa a presidir a Anvisa, explica que o SNGPC passou a ter uma plataforma digital a partir de 2007, e, desde 2014, monitorava movimentações, compras, vendas, transformações, transferências e perdas desses medicamentos comercializados em farmácias e drogarias privadas do país.
Na nota enviada à Sputnik, a Anvisa argumenta que o SNGPC é apenas uma das ferramentas de suporte ao controle e fiscalização, e que a escrituração da venda de medicamentos controlados “segue sendo realizada pelos estabelecimentos e pode ser confrontada com os documentos armazenados”.
Os entrevistados, entretanto, ponderam que a estimativa que se tem do consumo atualmente baseia-se unicamente nos dados sobre a produção, o que é insuficiente para um diagnóstico fidedigno desse consumo.
De acordo com a Anvisa, a realização de fiscalizações não está vinculada ao SNGPC, e utiliza outros dispositivos de controle, “como a escrituração da movimentação e os documentos comprobatórios da movimentação, dentro das mesmas regras sanitárias existentes anteriormente”.
Cerca de 104,6 mil farmácias no país estão autorizadas para a atividade de “dispensação de medicamentos contendo substâncias sujeitas ao controle especial”. Como o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) é descentralizado, com ações específicas para União, estados e municípios, a fiscalização de farmácias compete às vigilâncias sanitárias locais. Logo, não há hoje um diagnóstico nacional dessas fiscalizações. Os dados estão disponíveis apenas localmente, segundo a Anvisa.
Outro ponto, não menos importante, diz respeito às políticas públicas, que precisam de dados e evidências para serem eficazes:
“Esse histórico é mais um dos dados necessários para termos um sistema de saúde pública funcionante”, argumenta Vecina. “É muito grave o sistema ter saído do ar, porque o controle desses medicamentos é importante do ponto de vista sanitário e do ponto de vista de acompanhar tendências. A saúde pública vive do registro de fatos importantes e essa tendência tem que ser acompanhada”, destaca.
Michele Caetano conta que os dados do SNGPC foram muito importantes para sua tese de doutorado, que investigou o uso ambulatorial de antimicrobianos no Brasil e sua associação com a resistência microbiana, que, segundo a OMS, está entre as principais ameaças para a saúde global.
O monitoramento dos hábitos de prescrição e consumo desses medicamentos contribui para decisões regulatórias e ações educativas, frisam os especialistas.
Nesse sentido, a farmacêutica comenta que a própria Anvisa identificou, com auxílios dos dados disponíveis pelo sistema, que estavam ocorrendo abusos de prescrição de inibidores de apetite, por exemplo, com destaque para a Sibutramina. “Isso resultou em mudanças na regulamentação da prescrição desses medicamentos”, diz ela. Além disso, conta, vários estudos foram feitos sobre o consumo de benzodiazepínicos [ansiolíticos], municiados pelo sistema da Anvisa:
“São estudos que possibilitam que a gente tenha acesso a informações importantes para definir estratégias de saúde pública, nortear gestores, tomadores de decisão, na elaboração de políticas de saúde. Então, no apagão, esse tipo de análise fica impossibilitada, porque os dados ficam presos nas farmácias”, exemplifica a pesquisadora.
A interrupção dos dados foi uma “perda muito grande” para a pesquisa, conta ela:
“Um dos objetivos de se monitorar é ver desvios de consumo. Então, durante a pandemia, a gente viu um grande desvio de consumo de medicamentos diversos, e um aumento absurdo de azitromicina nesse período”, relata. “O consumo começou a cair depois que a vacinação avançou. Mas sem os dados de 2022 e 2023, não conseguimos saber se o padrão de consumo voltou ao que era antes da pandemia”.
O problema brasileiro impacta também a saúde pública mundial, ressalta a especialista, uma vez que a Organização Mundial de Saúde (OMS) faz estimativas e relatórios com base nas informações providas por seus Estados-membros.
Assim como Caetano, Vecina defende a imediata restauração do SNGPC para que discussões importantes sobre saúde pública possam ser travadas nacionalmente e internacionalmente, fundamentadas em estatísticas e evidências. Uma delas, destaca ele, diz respeito à medicação de pacientes em estado de grande sofrimento:
“O Brasil tem uma taxa de consumo [de medicamentos para dor] per capita que é um décimo da taxa per capita dos europeus. Nossos pacientes morrem com dor. Isso é desumano. Então, acompanhar não só o que se produz, mas quanto do que se produz está sendo consumido é importante para entender como é essa questão do ciclo da atenção à saúde dos pacientes brasileiros”, defende Vecina.
Fonte: Sputniknews