Ministério da Saúde na mira, mais uma vez

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A quem interessa demitir Nísia Trindade? A tirar pelas últimas manobras, não só ao Centrão – mas até a um deputado do PT. Movimento sanitarista frisa: ao povo, interessa manutenção da orientação técnica e progressista do MS

Pela segunda vez desde a posse do atual Governo Federal, surgem como uma onda nas páginas da mídia comercial questionamentos à atual condução do Ministério da Saúde, com acusações que vão da lentidão no repasse de recursos à “falta de diálogo” com os parlamentares. Para bom entendedor, meia manchete basta: assim como em julho passado, interesses menos que democráticos querem defenestrar Nísia Trindade para ter mais controle sobre uma verba que pode chegar a R$231,3 bilhões em 2024.

Mas há novidades. Além dos atores de sempre, até um deputado federal petista, Washington Quaquá (PT-RJ), veio a público como um dos insatisfeitos, definindo Nísia, ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) por cinco anos, de “inoperante e frágil”, que “não tem o tamanho que o governo Lula precisa”. Por sua vez, o Setorial de Saúde do PT do mesmo estado onde Quaquá se elegeu posiciona-se de maneira diametralmente oposta: “seguimos apoiando e confiando no trabalho do Ministério da Saúde em defesa da saúde pública e ressaltando a necessidade de uma gestão pautada na ciência, como vem realizando a ministra Nísia Trindade”, diz nota publicada no dia 14 de janeiro.

A avaliação não é exclusiva dos petistas fluminenses. Grupos como a Frente pela Vida (FpV) e entidades do movimento sanitarista nacional tem se pronunciado em favor da manutenção da atual condução do MS. Túlio Batista Franco, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro da operativa nacional da Frente pela Vida, e Getúlio Vargas Júnior, conselheiro do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e coordenador nacional do movimento Saúde pela Democracia, conversaram com Outra Saúde na última terça-feira (16/1) para compartilhar avaliações sobre a situação.

A busca de substituir a socióloga e ex-diretora da Fiocruz, eles apontam, responde em primeiro lugar a um interesse “nada repulicano” de controlar o robusto orçamento do Ministério da Saúde.  E a defesa, pelos movimentos, da manutenção de Nísia não é o apego a um nome – mas a convicção na importância da continuidade de um trabalho na pasta da Saúde marcado pela retomada do rigor técnico e de uma orientação progressista.

Disputa por recursos

“Essa nova ofensiva tem uma motivação tornada bem explícita por uma matéria do jornal O Globo no dia 13 de janeiro: o fato de o Ministério da Saúde ter estabelecido critérios técnicos para o repasse de emendas parlamentares aos estados e municípios”, diz o coordenador da Frente pela Vida. Isso se deu por meio de uma portaria que determinou que o envio de recursos fosse conduzido por critérios definidos pela Comissão Intergestores Bipartite, onde dialoga-se com autoridades das esferas estadual e municipal.

A insatisfação dos parlamentares, diz nota lançada pela FpV, “não é com o Ministério da Saúde, mas com a República, porque este propôs critérios republicanos no tratamento da coisa pública: impessoalidade, transparência, critérios técnicos na destinação do orçamento. Afinal, se trata de recursos destinados ao cuidado, e defender a vida da população, no caso do SUS”.

Vargas Júnior, que é presidente da Confederação Nacional de Associações de Moradores (CONAM) e representa os movimentos sociais no CNS, considera que dois outros componentes também influem na pressão sobre o cargo de Nísia, além do apetite orçamentário. “Há o machismo estrutural contra uma mulher na condução do Ministério, além da restrição contra um quadro que conhece a política mas vem de uma trajetória técnica”, ele cita.

Privatizar ou engolir recursos públicos?

A pressão para demitir elementos de orientação mais avançada responde a uma nova tática de grupos conservadores em relação ao orçamento da Saúde, avalia Vargas. Ele explica que “antes, só se falava em privatização, mas hoje alguns setores entenderam que preferem o SUS público e com dinheiro para executar suas políticas com a interferência do interesse privado”, como por meio das Organizações Sociais (OSs) ou de contratos pouco transparentes com outros entes.

Para que tais transações ocorressem mais livremente, seria um triunfo estratégico para esses grupos políticos nomear um ministro e uma equipe de secretários alinhada com esse tipo de concepção – estranha à Saúde Pública.

O cenário foi esse nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, quando nomes como Ricardo Barros (PP-PR), Luiz Henrique Mandetta (União-MS) e Marcelo Queiroga ocuparam a pasta. Multiplicaram-se, nesses períodos, as intrusões dos interesses privados na gestão pública e o mal-direcionamento de recursos que poderiam fortalecer o caráter estatal do SUS.

Crítico de última hora

Causou surpresa e questionamento no movimento sanitarista a participação de Washington Quaquá, vice-presidente nacional do PT e deputado federal pelo partido, na manobra contra Nísia, tão claramente orquestrada por setores sem compromisso com a Saúde Pública.

“Quando ele faz esse movimento, ele está prestando um desserviço ao Sistema Único de Saúde, muito bem gerenciado pela equipe do Ministério da Saúde que teve o trabalho de recuperar sua capacidade operacional”, afirmou o professor da UFF. “Recebi com estranhamento essa crítica. Ninguém comprometido com o SUS ganharia com a saída de Nísia”, complementou o conselheiro do CNS.

Outra Saúde teve acesso a um documento produzido conjuntamente pelo Setorial Nacional de Saúde do PT e pelo Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas de Saúde da Fundação Perseu Abramo, intitulado “Saúde não se negocia: com o SUS não se brinca”, que buscou listar alguns dos êxitos da gestão até aqui na saúde pública.

No texto, o NAPP-Saúde da FPA lembra que “os esforços iniciais foram dedicados para retomar políticas consagradas e essenciais criadas em gestões anteriores dos governos do PT, como o Mais Médicos, a Farmácia Popular, o Brasil Sorridente, o SAMU, Saúde Mental, entre tantas outras. Foi preciso dedicar muitos esforços para recuperar o Programa Nacional de Imunização e ampliar a cobertura vacinal. Da mesma forma, para retomar as iniciativas visando fortalecer o estratégico Complexo Econômico e Industrial da Saúde. A ampliação de equipes de Saúde da Família permitiu ampliar e qualificar o acesso à atenção primária”.

“Os esforços para implementar ações e programas nas áreas de vigilância à saúde, saúde digital e saúde indígena, com prioridade ao povo Yanomami, são efetivos e já produzem os importantes resultados. Um intenso esforço para reduzir filas de cirurgias eletivas está em curso. O Brasil voltou a ter protagonismo e se enunciar nos foros internacionais, deixando de ser um pária sanitário. Os resultados desses esforços, ainda que apenas alguns exemplos tenham sido aqui citados, são inquestionáveis”, enumera um parágrafo do mesmo escrito.

Intervindo na discussão sobre a linha mais correta para as ações em defesa do Ministério, Túlio e Getúlio fizeram ponderações sobre a palavra de ordem “Fica Nísia”. “’Fica Nísia’ seria adequado uma situação em que a ministra estivesse prestes a cair. Nísia está forte no governo, o Centrão não conseguiu criar o que queria, que é a impressão falsa de que ela está frágil”, diz o sanitarista da UFF.

Já Getúlio Vargas relembra que, na 17ª Conferência Nacional de Saúde, o movimento Saúde pela Democracia “lançou a palavra de ordem ‘Mais Nísia é mais SUS, mais Brasil e mais democracia’. Não precisa ficar na palavra de ordem defensiva do ‘fica Nísia’, temos que ir para a ofensiva para conquistar tudo o que o SUS pode ser para o povo se ele for fortalecido para cumprir seu papel e missão histórica”.

Porque optar pela continuidade

O compromisso da atual equipe do MS com a Saúde Pública, diz Túlio Batista Franco, pode ser condensado em quatro pontos – essenciais, ele aponta, para entender porque seu trabalho deve continuar inatingido pelas vontades de setores parlamentares. São eles: “O compromisso com o SUS como um sistema público de acesso universal e financiamento estatal; a competência técnica para um entendimento completo da gestão do SUS; a compreensão de que um SUS forte e vitalizado significa mais democracia para o país; e o espírito republicano com relação aos recursos, como no exemplo da portaria dos critérios para repasse”.

“Sinteticamente”, resumiu Vargas, “Nísia no comando do Ministério é garantir que o programa que foi eleito em outubro de 2022 saia do papel para a realidade. O SUS que o povo brasileiro merece e precisa”.

Fonte: Outra Saúde

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