O que está por trás da “Guerra do TikTok”?

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No contexto da guerra entre Rússia e Ucrânia, especialistas alertam que o avanço da cobertura de conflitos por meio de redes sociais como o TikTok deve ser observado com atenção

Autor: Denis Pacheco – Sábado, 12 de março de 2022

Desde 24 de fevereiro, o mundo assiste atônito ao conflito entre a Rússia, uma das maiores potências do planeta, e a Ucrânia, segundo maior país da Europa que, 30 anos atrás, declarou independência da antiga União Soviética. Embora confrontos dessa natureza infelizmente não sejam novidade, alguns dos grandes nomes envolvidos na guerra entre territórios seculares não possuem mais do que alguns anos de existência.

No dia 6 de março, a plataforma TikTok, lançada na China em 2016, anunciou para o mundo a suspensão de publicações em vídeo na Rússia. A ação foi motivada por uma lei recente que prevê até 15 anos de prisão para os que divulgarem o que o governo russo considerar fake news sobre a guerra na Ucrânia. Não por acaso, o Facebook e o Twitter também foram bloqueados na Rússia, após dias de limitação de acesso.

Ainda que o timing seja conveniente, a censura russa ao aplicativo — o TikTok está disponível em mais de 150 países e 75 idiomas — não surgiu como uma causalidade da guerra, mas como o resultado de ações premeditadas. Antes da invasão, em 16 de fevereiro, as autoridades russas haviam alertado os gigantes Google, Meta, Apple, Twitter e o próprio TikTok que teriam até o final do mês para cumprir uma nova lei que exige que eles criem pessoas jurídicas no país.

O objetivo da chamada “lei de desembarque” era facilitar a censura do governo russo na internet, cujo potencial tanto para derrubar, quanto para preservar democracias tem sido alvo de especulação desde a ascensão das primeiras redes sociais.

Para o professor de pós-graduação no Insper e colunista da Rádio USP Carlos Eduardo Lins da Silva, o receio russo do potencial de redes como o TikTok não é surpresa. Na mídia internacional, o combate com a Ucrânia tem sido apelidado de “Guerra do TikTok”. A alcunha foi motivada pela quantidade maciça de vídeos distribuídos pela rede cobrindo diversas facetas do conflito, em especial, propagandeando o lado invadido pelos russos.

“O maior número de consumidores de informações sobre a guerra tem sido via TikTok, além de outras plataformas como o Twitter e Facebook”, reforça o professor. Para ele, a retirada estratégica do TikTok faz sentido já que a maioria do conteúdo na rede “provisoriamente cobre o lado da Ucrânia”, entretanto, se o resultado da batalha for uma invasão completa russa, os responsáveis pela plataforma e os seus usuários poderão ser processados pela nova lei.

Carlos Eduardo Lins da Silva - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Carlos Eduardo Lins da Silva, doutor, livre-docente pela ECA/USP e professor do Insper – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Ainda assim, a guerra entre os países permanece um grande tópico nas redes, que, nos últimos dez anos, têm se mostrado cruciais na cobertura de guerras. Nos relatos da imprensa sobre o assunto, muito se fala sobre como as revoltas da Primavera Árabe, em 2010, e a guerra civil na Síria, iniciada em 2011, também utilizaram o Facebook e o Twitter para organizar protestos e transmitir cenas do ponto de vista de civis. No entanto, nos anos seguintes, essas mesmas plataformas se tornaram consideravelmente mais complexas (inclusive do ponto de vista moral), assim como os smartphones se tornaram melhores na captura e transmissão de eventos em tempo real.

E o avanço da tecnologia também facilitou seu uso indevido, tanto que catapultou a desinformação e as fake news como uma das principais preocupações de democracias em todo o mundo, inclusive no Brasil. Fato é que a maioria das grandes redes sociais ainda têm dificuldade de conter o avanço da desinformação. Para Lins da Silva, “o ponto é que essas plataformas têm sido pouco estritas no seu dever de alertar sobre inverdades. Ou simplesmente não publicar o que não se sabe que é verdade. Elas são displicentes, para dizer o mínimo”.

Origens do fotojornalismo

Ainda que separar o que é falso do que é verdadeiro seja propagado como uma das grandes preocupações, tanto da parte das autoridades, quanto da parte dos usuários das redes sociais, nem sempre o design dos aplicativos favorece essa diferenciação. A capacidade de viralização de um tweet, um vídeo ou mesmo uma imagem fora de contexto é astronômica, e, desde o começo do século 20, quando as primeiras coberturas fotográficas de guerra estabeleceram seus protocolos, sabe-se que o poder de uma boa imagem pode mover países inteiros.

Sobre isso, nas últimas semanas, uma das imagens mais marcantes da invasão da Ucrânia pela Rússia é uma foto, tirada pelo fotojornalista Tyler Hicks, que mostra um soldado morto no chão em frente a um tanque desativado, seu corpo coberto por uma camada de neve. A foto foi publicada na primeira página do The New York Times em 26 de fevereiro.

Outro registro do início da guerra, citado por diversas publicações, é um vídeo do TikTok, postado em 24 de fevereiro, mostrando imagens de câmeras de telefone e videoclipes de mísseis caindo sobre a cidade de Kiev como fogos de artifício. O vídeo é acompanhado pela música Little Dark Age, da banda indie-pop MGMT, elemento que, embora pareça mórbido, se encaixa perfeitamente nas diretrizes estéticas do TikTok.

Ambos são faces de uma cobertura multifacetada que coloca tradições distintas em conversa e em conflito. Para a historiadora ‪Erika Zerwes, pesquisadora das origens do fotojornalismo em seu doutorado defendido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o surgimento desse tipo de cobertura envolve, primeiramente, entender a evolução da tecnologia fotográfica 100 anos atrás e as motivações por trás dos primeiros grandes nomes do campo.

Citando fotógrafos como Robert Capa, que, durante a Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939, registrou “os indivíduos anônimos, muitas vezes civis e refugiados, que representavam a destruição causada pela guerra”, a especialista lembra que as câmeras na época “deram um salto tecnológico”. Por sua portabilidade, câmeras como a recém-criada Leica “possibilitaram que o fotógrafo se envolvesse bastante e estivesse junto dos soldados, bem perto da ação”.

Foi a partir dessa primeira cobertura de imagens que os fotógrafos do conflito “desenvolveram uma linguagem fotográfica, a partir de evoluções técnicas, mas também a partir de um olhar que queria denunciar a barbárie fascista que era cometida contra um país que estava sendo deixado sozinho para lutar contra o fascismo mundial”, sintetiza ela.

A linguagem visual criada pelo grupo formado por Capa, Gerda Taro e David Seymour “impactou a história da fotografia e deu as bases do que se tornou o fotojornalismo moderno”, afirma.PreviousNext

Imagens de Robert Capa – Fotos: Flickr

Da televisão ao TikTok

Da Espanha em 1936 até a Ucrânia hoje, muito se avançou na cobertura midiática de grandes conflitos. Não por acaso, entre 1965 e 1975, nenhum outro evento dominou tanto os noticiários da televisão americana como a guerra no Vietnã.

Considerada uma das primeiras guerras televisionadas, a cobertura do ataque no Sudeste Asiático é apontada por especialistas como uma das responsáveis pela saída dos Estados Unidos do Vietnã. As imagens que viajaram o mundo mostravam, entre diversas cenas militares, vítimas e soldados perdidos em um combate cruel.

Se, na época, a imersão do grande público no Vietnã via imprensa internacional era considerada extensa, hoje, quando cada um de nós tem no bolso uma janela eletrônica que nos permite acesso em tempo real aos locais de guerra, a sensação pode ser ainda pior.

Wagner Souza e Silva - Foto: Jornal da USP
Wagner Souza e Silva – Foto: Jornal da USP

De acordo com o professor Wagner Souza e Silva, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, “obviamente, resguardados os exageros, podemos dizer que estamos fazendo uma imersão nas guerras”. Pela internet e através de nossos smartphones, “nós acabamos vivenciando ou pelo menos imaginando com mais apuro o que é uma realidade de guerra, e isso é impressionante”.

Ao mencionar o Vietnã, o pesquisador especializado em fotografia documental, defende que “o Vietnã foi uma guerra muito midiatizada, mas não com essa intensidade. Hoje, é possível gerenciar a opinião pública com a força das redes sociais”.

No caso do TikTok, sua força e sucesso podem ser atribuídos ao quão visual e quão instantâneo ele é. A capacidade dos usuários do aplicativo de editar vídeos complexos unindo memes, música, dança e notícias é algo sem precedentes.

Embora uma parcela da geração mais velha negue, sua facilidade de uso é um dos seus principais trunfos. Em comparação com outras redes que incluem vídeo em sua timeline, o TikTok é apontado como a “plataforma de vídeo ideal para moldar percepções de como um conflito está se desenvolvendo”.

Como mencionado antes, o potencial para uso indevido, um conceito difícil de sintetizar por parte das próprias plataformas, é motivo de preocupação. Entretanto, para o professor, até mesmo essa preocupação deveria ser investigada com atenção. “Quando estamos falando de imagem, estamos falando sobre ambiguidade”, teoriza ele. “Temos que olhar as imagens sempre com reservas, mesmo no jornalismo.”

Sobre os casos de imagens de cobertura da atual guerra que se mostraram falsas, o pesquisador opina que mesmo as narrativas falsas possuem o que ele chama de “valor simbólico”. “Estamos vivenciando uma certa dificuldade em saber manejar essas imagens. Então, temos que desconfiar de todas as imagens e construir nossa posição a partir de diversas fontes”, advoga ele ao apontar a importância do conceito de literacia midiática.

Para o professor, devemos “nos preocupar menos com o fato da imagem ser verdadeira ou falsa, e mais com o que está sendo construído com esse repertório iconográfico”.

Imprensa vs. redes sociais

Diante de uma guerra que ainda não tem previsão de fim, qual é o papel que continua a caber à chamada mídia tradicional ou mídia de legado, como identifica Lins da Silva?

“Eles têm a obrigação institucional e ética da profissão de obter informações e fazer o possível para que não sejam veiculadas mentiras e informações fora de contexto, que possam ser erroneamente interpretadas”, responde ele. “Apesar dos problemas, que são muitos, eles continuam sendo os canais” .

Para além disso, de acordo com o professor Wagner, “a mídia tradicional tem que levar em conta a realidade das redes, perceber sua importância no jogo midiático e olhar para isso não mais como um submundo”. A ideia, na opinião do especialista, não é competir, mas assimilar.

Em um mundo em que as imagens continuam a mobilizar volumes cada vez maiores de pessoas, o objetivo do fotojornalismo de guerra permanece o de testemunhar; entretanto, cabe aos leitores, espectadores e usuários interpretarem o que enxergam nas diversas imagens e, em um contexto de redes sociais abundantes, se tornarem mais proficientes também na captura e difusão dessas interpretações.

Fonte: Jornal USP

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