Projeto Violas Brasileiras interpreta a diversidade cultural do Brasil

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Em CD e livro de partituras, violeiros registram duetos entre sete tipos de violas, vindas de diferentes cantos do País

A chegada do álbum e do livro de partituras Violas Brasileiras pode ser entendida como uma celebração da pluralidade cultural do Brasil. Ou a afirmação da força da diversidade, manifesta a partir de um instrumento encravado nas tradições populares, cujo interesse só cresce ao longo dessas primeiras décadas do século 21. Respondendo aos lamentos pelo desaparecimento da viola caipira na música sertaneja, trabalhos como esse mostram o vigor, o encanto e a resistência dos saberes do povo.

Dois homens em pé numa estrada de terra, mostrando cinco violas.
André Moraes (esq.) e César Petená (dir.): duetos que misturam timbres, afinações e culturas – Foto: retirada do livro digital Violas Brasileiras

Os violeiros André Moraes – mestre em Educação Musical pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP – e César Petená, com uma parceria que já corre dez anos, reuniram sete tipos diferentes de violas, vindas de diferentes cantos do Brasil, e as colocaram para duetar. A viola machete do Recôncavo Baiano se encontra com a viola de cocho de Mato Grosso. A viola dinâmica do repente nordestino conversa com a viola de buriti do Jalapão, Estado do Tocantins. A viola caiçara do litoral sul de São Paulo se junta à viola caipira e também à viola de cabaça de 12 cordas construída pelo violeiro e artesão Levi Ramiro.

“Embora não tenhamos proximidade física com todas essas realidades culturais, buscamos nos nutrir dos elementos, em uma relação amigável de aprendizado com alguns mestres das violas”, comenta Petená. Foi assim que – conta o músico -, ao adquirir sua viola caiçara, acabou na casa de um mestre de fandango para ouvi-lo tocar e afinar o instrumento. Também esteve em Mato Grosso para escutar o siriri, tocado com a viola de cocho.

Onde o contato presencial não foi possível, a lacuna foi suprimida pela comunicação a distância. Como aconteceu com o mestre de viola de buriti Maurício Ribeiro, com quem Petená teve algumas conversas pouco antes de o violeiro morrer, em 2021, enviando gravações de suas composições para o mestre. “Tentamos explorar o que os instrumentos trazem por si só, como a afinação e o timbre, mas também seus elementos culturais”, afirma o músico. “Buscamos aprender com quem está mais enraizado na cultura e, a partir daí, criamos, compomos e improvisamos.”

Moraes, que cresceu ao som da música caipira e com a televisão sintonizada nas manhãs de domingo no programa Viola, Minha Viola, de Inezita Barroso, reforça as palavras do parceiro. “Não vivemos todas essas culturas, mas acabamos bebendo dessas fontes, assimilando esses elementos musicais e traduzindo em composições e arranjos para as violas”, explica. “Temos um pouco do nosso olhar e da nossa intenção com esses instrumentos, mas dialogamos com as culturas, com o que ouvimos em CDs e nas plataformas digitais.”

Das 12 músicas registradas pelo duo, nove composições são assinadas por Petená e uma por Moraes, além de uma faixa com autoria compartilhada pela dupla. Petená ainda é o responsável pelo arranjo de uma suíte com composições de Arnon Tavares e Maurício Ribeiro, a Suíte Mumbuca.

Suíte Mumbuca, dueto entre viola caipira e viola de buriti

O repertório do projeto é fruto dos anos de estrada da dupla, tendo sido construído ao longo de uma década. Começando apenas com violas caipiras, o duo foi pouco a pouco introduzindo novas violas em suas apresentações, testando afinações e timbres e escrevendo arranjos para os instrumentos. “Fomos colocando um pouco das nossas ideias, misturas e timbres”, diz Moraes.

Desde o início, explica Petená, o interesse foi explorar a diversidade musical, algo que fica evidente no álbum e no livro. “Já tínhamos intenção de mostrar ritmos e estilos diferentes de viola”, conta. “Tentamos, no CD e no livro, traçar um caminho ao pensar na ordem das músicas. Tentamos ao máximo fazer algo didático: a ordem das composições começa com um samba da Bahia e daí a cada faixa chega uma viola nova. Da Bahia vai para o Jalapão, depois chega ao siriri e à guarânia da região pantaneira.”

Despreocupado (César Petená), faixa de abertura de Violas Brasileiras, reunindo viola machete e viola de cocho

Petená revela que as composições surgiram de duas maneiras. Parte das músicas foi escrita já pensando nos instrumentos e nos encontros entre violas que gostariam de promover. “Foi uma escolha meio musical e meio logística: o que está faltando de mistura. Já temos metade do repertório, mas ainda não experimentamos uma viola com tal viola”, explica. Exemplo desse processo é a faixa Mistura Paulista.

Mistura Paulista (André Moraes e César Petená), décima faixa de Violas Brasileiras, dueto entre viola machete e viola de buriti

A outra forma de compor envolveu músicas que já estavam no repertório e foram retrabalhadas pelo duo para experimentações com violas diferentes. É o caso de Céu de PitangueirasPaca Pimenta e Patu, esta última um baião composto por Petená. Tocada originalmente com duas violas caipiras, foi registrada no projeto com o dueto entre viola dinâmica e viola de buriti.

Patu (César Petená), terceira faixa de Violas Brasileiras, que une viola dinâmica e viola de buriti

Partituras e tablaturas

Começando seus estudos pelo violão, Moraes integrou o projeto Guri e depois migrou para a viola caipira, estudando na Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim (Emesp) e graduando-se em Música pela Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. Seguiu estudos na pós-graduação da ECA, tornando-se mestre com uma dissertação sobre o ensino on-line de viola caipira. Hoje, além do trabalho com Petená, integra a Orquestra Filarmônica de Violas de Campinas e ministra cursos e oficinas.

Formado primeiramente em guitarra elétrica pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul (SP), Petená partiu para a viola caipira graduando-se no instrumento pela Faculdade Cantareira, em São Paulo. Em seguida, fez pós-graduação em música pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Paralelamente aos trabalhos com violas, é arquivista e editor de partituras na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp).

Em 2023, contemplado com recursos do Programa de Ação Cultural de São Paulo (Proac-SP), o duo começou a materializar a gravação do CD e elaborou o livro de partituras e tablaturas como contrapartida ao financiamento do álbum. Editado em português e inglês, o volume traz a transcrição de todas as faixas do CD, com a escrita musical acompanhada por fotografias dos instrumentos utilizados nas gravações, informações sobre os artesãos responsáveis por sua produção e detalhes dos materiais usados na confecção de cada peça. Moraes e Petená registram ainda breves comentários sobre como cada viola chegou às mãos da dupla, seja por compra, seja por doação de amigos.

Uma partitura musical.
Trechos da partitura e da tablatura de Mistura Paulista (André Moraes e César Petená)

Instrumentos da cultura popular com aprendizado calcado na oralidade, as violas oferecem desafios para sua escrita, já que não possuem uma tradição que tenha consolidado um padrão para as notações. “A viola caipira tem ganho um repertório escrito, mas ainda não há um padrão porque existe discussão sobre a melhor maneira de escrever para as cordas duplas”, explica Petená.

A solução adotada pelo duo, conta o músico, foi usar uma escrita similar à do violão, deixando subentendido que ambas as cordas que aparecem em pares – característica de todas as violas, com exceção da viola de cocho e da viola de buriti – estão representadas na partitura. Além disso, o livro traz também tablaturas, incluídas por serem uma forma de escrita simplificada, capaz de atingir um público mais amplo.

Nos registros do livro, a dupla não buscou notações exatas para aquilo que se escuta no álbum, desviando-se da possibilidade de reproduções idênticas. “As partituras não usam uma notação muito rigorosa, com muitas indicações de performance”, comenta Petená. “Acreditamos que algumas coisas são da nossa interpretação e nem nós mesmos tocamos da mesma forma em todos os shows. As partituras são livres para quem quiser tocar do seu jeito.”

Sons da diversidade

De origem portuguesa, a viola chegou ao Brasil durante a colonização. Foi usada pelos jesuítas no processo de catequização dos indígenas e ganhou o interior do País na bagagem de bandeirantes e tropeiros. Inicialmente um instrumento urbano, perdeu espaço para o violão no século 19 e foi acolhido pelas camadas populares do interior. Em cada lugar adquiriu características e usos particulares, produzindo a diversidade de instrumentos e integrando a multiplicidade cultural das quais o projeto de Moraes e Petená dá uma amostra.

Nessa perspectiva, o trabalho da dupla pode ser entendido como parte de um movimento crescente de valorização da diversidade cultural representada pelos diferentes tipos de viola. Vem somar-se a iniciativas como o Festival Viola da Terra, que já conta com três edições realizadas em Campinas, e a Mostra Violas Brasileiras, sediada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo em 2024. Sem falar do álbum Concerto para Vaca e Boi, lançado em 2022 pelo violeiro Roberto Corrêa, que coloca seis tipos de violas brasileiras em duetos com a viola da gamba, instrumento surgido no século 14 na Península Ibérica. Em comum, todos esses projetos permitem pensar o Brasil em sua variedade de expressões culturais.

Foto de uma viola caiçara.

Foto de uma viola de cocho.

Foto de uma viola machete.

Foto de uma viola caiçara.

Foto de uma viola de cocho.

De acordo com Petená, o combustível original da dupla foi apenas a admiração pelos instrumentos, seus timbres e possibilidades. O tempo é que tratou de mostrar a eles a importância das culturas ligadas a cada viola. “Você vê aquelas comunidades quilombolas do Jalapão tocando um instrumento que parece tão rústico, mas com precisão rítmica, afinação, destreza técnica, isso encanta muito.”

Para Moraes, há um conteúdo pedagógico no trabalho feito pela dupla. “Temos uma apresentação com viés educativo, na qual apresentamos os instrumentos e falamos a partir do repertório”, explica. “Formatamos um show em que utilizamos algumas canções para descrever essas violas.”

Todo esse esforço dos músicos já está sendo reconhecido. No dia 10 passado, a dupla foi homenageada na Câmara Municipal de São Paulo com o Prêmio Inezita Barroso, voltado para artistas, instituições e personalidades que trabalham para promover a música caipira. Na mesma ocasião, Moraes também recebeu uma homenagem individual por sua contribuição à música caipira. E no dia 14 passado foi mais uma vez reconhecido, desta vez na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), em virtude de sua parceria com Jackson Ricarte em um projeto que reúne músicas de Tião Carreiro, rei do pagode caipira, e de Luiz Gonzaga, o rei do baião.

Nove violas de tipos diferentes.
Todas as violas do projeto. De cima para baixo, em sentido horário: viola dinâmica, viola de buriti, viola caiçara, viola machete, viola de cocho, viola caipira, viola de buriti, viola de cabaça e viola de cocho.

Petená conta que as pessoas vão às apresentações da dupla esperando encontrar apenas a viola caipira, mais conhecida do que as outras, e se deparam com instrumentos que sequer imaginavam. “Aproximar esses instrumentos em um único show, de certa forma, leva as pessoas a refletir que o Brasil não é só aquele em que vivem”, diz o músico. “Não pensamos em um manifesto, mas acredito que o projeto funciona, sim, como um poder transformador”, afirma o músico.

O livro Violas Brasileiras está disponível para download gratuito no site Violas Brasileiras Duo. O álbum com as 12 faixas também está disponível gratuitamente em todas as plataformas digitais. Os interessados em adquirir as versões físicas do livro e do CD podem entrar em contato com os músicos através do e-mail contato@violasbrasileirasduo.com.br e pelo telefone (11) 98306-5346. 

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado / Fonte: Jornal da USP / André Moraes e César Petená – foto: Tércio Esperandio

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