Saúde, micropolítica e transformação social

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Em resposta à crise da democracia, mal-estar e desejo de mudança despontam a partir das lutas territoriais e identitárias. Reivindicam direitos para todos, mas não traçam caminho comum. Como articulá-los, antes que se subordinem à lógica de acumulação?

Por Sonia Fleury, para a coluna Saúde É Democracia

A Associação Latino-Americana de Medicina Social, cumpriu 39 anos desde sua fundação em 1984 em Ouro Preto, reunindo em seu XVII Congresso mais de 1000 participantes de 15 países da América Latina, para debater temas relacionados aos três eixos temáticos: a sindemia, a reconfiguração no mundo e as lutas pelo bom viver.

A ALAMES foi fruto da difusão da abordagem da Medicina Social na região, que no Brasil assumiu a nomenclatura de Saúde Coletiva, com a construção de um campo do saber que incorporou as ciência sociais na compreensão dos fenômenos de saúde e doença, bem como na análise do planejamento estratégico e estudo da organização dos sistemas e práticas assistenciais. O Congresso atual prestou homenagem a Juan César García, Maria Isabel Rodriguez e Mario Testa, responsáveis pela difusão do pensamento social em saúde e da consolidação de centros de pós-graduação para formação de profissionais sanitaristas em toda a região. O CEBES representa a ALAMES no Brasil.

Sonia Fleury, pesquisadora sênior do Centro de Estudos Estratégicos Antônio Ivo de Carvalho da FIOCRUZ, participou ativamente deste movimento desde a criação da ALAMES. No XVII Congresso fez parte da mesa Central do Eixo Sindemia com o tema Más allá de una pandemia: de qué se habla, qué se oculta? A mesa foi composta também pelos pesquisadores Mário Rovere (Argentina); Cecília Santana (Cuba) e Asa Cristina Laurell (México) sendo coordenada por Ana Maria Costa (Brasil/CEBES).

Na sua exposição Sonia Fleury buscou entender a sindemia, que abrange fatores sociais, culturais e comportamentais em um contexto de crise sanitária, a partir da perspectiva política, destacando tais fatores que possibilitaram sua ocorrência e agudização, como no Brasil, e as consequências desse evento nas estruturas de poder.


Além da Pandemia: Determinantes Políticos e Reconfiguração da Política

A pandemia da COVID-19 se instalou em um mundo assolado por transformações globais que caracterizam uma conjuntura crítica, na qual fenômenos macropolíticos e econômicos tais como o crescente aumento das desigualdades e o esvaziamento da capacidade de representação das instituições políticas, tanto funcionaram como antecedentes como foram aprofundados pela crise sanitária. São evidências a falta de soberania sanitária e a dependência de equipamentos e insumos por parte dos países menos desenvolvidos, bem como a incapacidade da governança dos organismos internacionais no provimento de uma distribuição mais equitativa das vacinas e na condução política das medidas não farmacológicas.

Ainda que o impacto da pandemia ainda não tenha sido totalmente mapeado, relatório da ONU/FAO1 de 2021 aponta um aumento expressivo da insegurança alimentar no mundo, com cerca de 20%, com 735 milhões de pessoas subalimentadas. Fatores como conflitos, mudanças climáticas e crises econômicas, que provocam a insegurança alimentar, foram amplificados pela pandemia, prejudicando o acesso aos alimentos. No Brasil o relatório da ONU aponta que 21 milhões estão passando fome, enquanto dados da Rede PENSSAN2, com outra metodologia, chega à cifra de 33 milhões, retornando o país ao Mapa da Fome3, do qual havia saído desde o início dos anos 1990. Por outro lado a concentração da riqueza, mesmo durante a pandemia, foi avassaladora. Segundo a OXFAM4, dois terços da riqueza acumulada no mundo são apropriados por 1% da população, assinalando que, pela primeira vez em 30 anos, a riqueza extrema e a pobreza extrema cresceram simultaneamente.

À pergunta de como a classe dominante opera para preservar tal sistema injusto, a economista Clara Mattei5 responde que isto se dá ao transformar a austeridade em ferramenta técnica, despolitizando a economia. As políticas de austeridade não geraram crescimento, nem ajudaram a resolver a questão da dívida, no entanto seguem sendo preconizadas e aplicadas. Sua persistência decorre da sua funcionalidade ao sistema capitalista, ao desempoderar a população trabalhadora, acabando com a noção de classe e conflito social. Assim, a maioria das pessoas que estão precarizadas e dependentes do mercado não veem outra saída que não seja se entregar ao mercado. A mercantilização de todos os aspectos da vida nos impõe uma servidão econômica que só poderá ser rompida com a recuperação do poder de organização e construção de formas comunitárias de produção e distribuição, nos conclama a economista. Em outras palavras, a eficácia da austeridade não é atingida pela sua eficácia como instrumento do desenvolvimento econômico, mas sim por criar a servidão econômica para a maior parte da população, eliminando as lutas políticas.

Tal imposição tem um custo insuportável para a população, o que resulta em um movimento que Safatle 6 identifica, desde a primavera árabe no mundo e de das manifestações de Julho de 2013 no Brasil, com a noção de insurreição, ou sequência insurrecional que articula o Norte ao Sul, em manifestações de descontentamento com a dinâmica de concentração provocada pelo neoliberalismo. Trata-se de um movimento paradoxal, no qual, por um lado, ocorre uma desidentificação da população com as macroestruturas políticas, enquanto, por outro lado, ocorre uma intensa reconfiguração da micropolítica, a partir das lutas territoriais e identitárias. Essas insurreições pontuais, no entanto, têm sido incorporadas aos regimes e lideranças populistas autoritárias, com base no sentimento de negação da política. Observa-se um fenômeno recente que pelo qual a direita se torna insurrecional, apropriando-se da gramática política das esquerdas, enquanto estas se encontram acuadas e sem capacidade de direção política.

No entanto, o poder destituinte que Safatle identifica nas manifestações atuais, que vão além de demandas específicas, é, a nosso ver incapaz de transformar-se em poder instituinte e, muito menos em constituinte e instituído (Fleury, 2009)7. Se na trajetória da reforma sanitária brasileira identificávamos os dilemas entre o instituinte e o instituído na configuração da correlação de forças, qual o alcance de um poder destituinte para introduzir e consolidar transformações políticas?

A 17ª Conferência Nacional de Saúde foi uma mostra importante da pujança da dinâmica da micropolítica que, com as lutas identitárias, cobra a democratização da democracia, exigindo que os direitos universais sejam acessíveis aos grupos que são estruturalmente marginalizados. Por um lado, representa um encontro inusitado, até o momento, entre um direito social, o direito universal à saúde, com os direitos humanos, na medida em que as reivindicações atuais são que o exercício do direito social não seja discriminatório e excludente. Atuam, neste caso, como poder instituinte, aliado à abertura do governo para transformar a arquitetura da participação social, anteriormente instituída, dando espaço para as forças sociais e lutas emergentes.

No entanto, persiste a preocupação devida à incapacidade de se articular as lutas fragmentadas em um projeto comum, centrado no combate à acumulação capitalista predatória da natureza e da exploração da classe trabalhadora. As práticas e agências desmercantilizadoras, que produzem espaços, cuidados e identidades comuns, necessitam articular a dinâmica micropolítica à busca das transformações macropolíticas, sob pena de terminar por reificar a subordinação econômica ao impossibilitar a constituição de um sujeito coletivo. Sujeito este, portador de um projeto de construção da política e da economia como parte do comum, que não se subordina á lógica mercantil da acumulação capitalista. Mesmo a potência apresentada no enfrentamento da pandemia da Covid-19 em favelas e periferias no Brasil, onde uma cidadania insurgente teve capacidade de organizar-se e produzir política pública onde o Estado falhou, tem sido objeto de disputa. A produção de conhecimentos, de novas tecnologias sociais, de gestão territorial, difusão de informações, mobilização de recursos e sua distribuição, produção de dados epidemiológicos, dentre outras iniciativas que foram construídas e disseminadas entre as favelas, mostraram que ali onde há exclusão, há resistência e constituição de poder (Fleury e Menezes, 2020)8. No entanto, a incapacidade e/ou lentidão das políticas públicas em trazer para a arena pública o poder instituinte que ali ficou manifesto, tem sido suplantada pela velocidade com a qual o mercado busca se apropriar dessas iniciativas como parte da agenda do empreendedorismo individualista, competitivo e mercantilizável.

Fonte: Outra saúde

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