STF e maconha: quem se importa com a saúde pública?

saúde

Por Paulo Fleury Teixeira

Decisão sobre porte e consumo da planta é vitória moral e ideológica, mas não toca na Lei de Drogas de 2006, que gerou o próprio julgamento. Caberá ao movimento social antiproibicionista lutar para chegarmos mais longe

Título original: Entre a indecisão do STF e a irresponsabilidade do setor de saúde pública: uma análise da necropolítica de combate à maconha e outras drogas no Brasil

Parte 1: A (in)decisão do STF

O STF descriminalizou o porte de 40 gramas e o cultivo de 6 pés de maconha para uso próprio. Esta é a manchete que, ao fim do julgamento, predominou na imprensa. O Supremo também reafirmou que o uso de drogas ilegais não é crime e o usuário não deve ser tratado como criminoso. Isto foi visto como uma vitória do movimento pela legalização da erva e do movimento antiproibicionista em geral, de acordo com a avaliação da maioria da imprensa e de boa parte do próprio movimento. Eu também penso assim. Mas, imediatamente, surgiram muitas dúvidas, bem fundamentadas, sobre o resultado prático do julgamento. Por enquanto, obviamente, não podemos avaliar seu impacto real, apenas analisar a decisão em si.

O STF estava julgando uma ação que pedia a inconstitucionalidade do artigo 28, sobre o usuário, na Lei Antidrogas de 2006. A ação foi impetrada por um jovem que foi pego portando 3 gramas de maconha, para uso próprio, e punido com uma pena alternativa. A tese era de que o dano, se houvesse algum, seria ao indivíduo próprio e não afrontaria a saúde pública, de modo que o Estado, ao coibir e punir esta ação, agredia, sem justificativa maior, a liberdade pessoal, um direito fundamental do indivíduo, protegido pela nossa Constituição. No voto original, o relator, Gilmar Mendes, concordou com a tese e sustentou que a proibição e punição da posse de drogas para uso próprio feria os princípios da intimidade e da privacidade.

Além disso, os juízes, em geral, em seus votos, demonstraram, calçados por dados consistentes e informações seguras, que a proibição de algumas drogas e a liberação de outras se baseia mais no senso comum do que na ciência. Álcool e cigarro representam riscos para a saúde pública muito maiores do que a maconha. Ora, é evidente que não pode haver racionalidade jurídica que sustente a proibição de uma droga de menor risco e a legalidade de drogas mais danosas para a saúde pública.

No entanto, o tribunal não conseguiu chegar a uma decisão coerente com tal conclusão, nem sequer apenas sobre a maconha. Ao contrário, o STF terminou reconhecendo a constitucionalidade do artigo 28 e, por extensão, da Lei Antidrogas de 2006 e apenas tentou esclarecer a sua interpretação e aplicação, com a pretensão de reduzir ou eliminar as grandes perversões que ocorrem na sua aplicação. Um dos objetivos centrais da lei era, justamente, fazer a distinção entre o traficante e o usuário e, com isto, reduzir a criminalização, o encarceramento e as mortes violentas relacionadas à questão das drogas ilegais no nosso país. Mas qual foi resultado principal desta legislação? Um aumento explosivo do encarceramento, com um forte viés de classe, idade e cor, como os juízes também documentaram, com fartura de dados. Desde então, houve, efetivamente, um adicional no encarceramento e morte, de muitos milhares de jovens, por tráfico de drogas. Jovens pobres, de baixa escolaridade, negros e negras, sobretudo.

A tese majoritária no STF foi que, em relação à maconha, teria de ser definido um critério mais objetivo para se distinguir quem é o usuário, em contraposição a quem é o traficante, de modo a reduzir a discricionariedade dos agentes policiais e judiciais, o que seria uma das principais causas do aumento assustador das prisões por tráfico de drogas a partir da lei de 2006. Mas nenhum voto dos nobres juízes teve como alvo a correção deste enviesamento do sistema policial e do judiciário brasileiro contra os jovens pobres, periféricos e negros. Tampouco houve nenhuma menção de combate à corrupção nas polícias e no judiciário, que, certamente, também é parte central da endemia de violência e mortes relacionadas ao tráfico de drogas no nosso país.

Enfim, o que ficou definido foi, apenas, que quem porta até 40 gramas ou tem até 6 pés de maconha e não tem indícios de ser um traficante deve ser considerado usuário e não deve ser criminalizado, mas penalizado administrativamente. Foi definido também que a pena de prestação de serviços comunitários não pode mais ser aplicada para os usuários de drogas proibidas. Reafirmou-se que o uso de drogas proibidas no Brasil não é crime e o usuário deve ser considerado uma questão de saúde. E, sobretudo, ficou estabelecida uma especificidade para a maconha porque, com todas as dúvidas e omissões, com todo o preconceito e oportunismo que se tem neste campo, os juízes reconheceram que os riscos da maconha são mais baixos do que aqueles das drogas recreativas consideradas lícitas pela Anvisa. Esta foi realmente uma vitória ideológica para o movimento antiproibicionista, em geral, e para o movimento pela legalização da maconha, em especial.

Daqui em diante, qual será o impacto objetivo deste ganho ideológico e moral? Veremos, e isto dependerá, muito, do próprio movimento social.

A mudança objetiva é quase nula

Infelizmente, muito pouco mudou em relação à lei de 2006. Como enfatizou o ministro Barroso, na proclamação da decisão do julgamento, o porte e o uso de drogas constantes da lista da Anvisa, incluindo a maconha, continuam proibidos, em qualquer quantidade. O portador das drogas deve ser conduzido à delegacia e as drogas, incluindo as plantas, devem ser apreendidas e também levadas à delegacia para serem destruídas. O usuário deve ser submetido a alguma pena administrativa com intuito pedagógico, sobretudo. E, certamente, como todos os juízes se apressaram em assinalar, o comércio, isto é, o tráfico das drogas, inclusive da maconha, continua sendo considerado um crime hediondo.

Exatamente como já estava sendo feito a partir da lei de 2006. Sabemos bem quais foram os seus resultados e, agora, a coisa pode ficar ainda pior. Quem for pego com outras drogas proibidas, com qualquer quantidade, ou quem for pego com mais de 40 gramas ou mais de 6 pés de maconha, será presumido traficante – com mais facilidade do que antes? Seja como for, a Lei Antidrogas atual ainda estará aí, a servir de instrumento justificatório para muita doutrinação ideológica fascista e religiosa, para muita violência e tortura institucionalizadas, para o encarceramento em massa e para a guerra civil continuada em que vivemos, sempre tendo como alvo preferencial os jovens pobres, periféricos, negros, como os ministros do STF bem demonstraram. E, no fim das contas, com qualquer quantidade de droga, inclusive de maconha, ainda será a discricionariedade, realmente muitas vezes enviesada e corrompida, dos agentes da polícia e da justiça que vai determinar se há ou não há indícios ou provas de tráfico.

Obviamente, o impacto real da decisão do STF, como de qualquer lei ou regra administrativa, depende muito do contexto social, político e ideológico em que ela é aplicada. Isto prepondera até mais do que a próprio texto da lei, é o que a própria história da lei de 2006 comprova. Eu torço muito, e da minha parte farei o que puder, para que o movimento antiproibicionista e o movimento pela legalização da maconha ganhem impulso com a vitória moral que nós tivemos e, com isto, se crie uma onda de expansão do cultivo pessoal da maconha aqui no Brasil, assim como de maior tolerância e respeito em relação aos usuários da maconha e das outras drogas.

Estamos em um momento político e ideológico muito dinâmico e crítico no Brasil, onde, talvez, as forças conservadoras e fascistas estejam realmente sendo derrotadas e haja, por isto, mais espaço para avanços sociais e institucionais. Com a decisão do STF, o movimento social poderá ganhar impulso, talvez, para conseguir também o desencarceramento daqueles que estão detidos pela posse de até 40 gramas e para conquistar, daqui para a frente, uma real redução no encarceramento e nas mortes, estúpidas e desnecessárias, de jovens envolvidos com drogas em nosso país.

Fora disto não vejo como a decisão do STF vá resultar em ganhos significativos para a população. Ao contrário, a vitória ideológica pode mesmo ser carregada de um retrogosto muito amargo de derrota social.

A decisão foi realmente tímida, covarde até, imprecisa e reflete um estado de coisas realmente absurdo e bárbaro. Os votos dos ministros e o julgamento, em si, pareceram um contorcionismo de incapazes, ou de hipócritas. Eles tudo veem, tudo sabem, mas não podem ou não querem corrigir de fato os erros legais e institucionais que todo ano levam à morte de milhares e ao encarceramento de dezenas de milhares de jovens no nosso país, desnecessariamente. Eles nem mesmo foram capazes de decidir segundo os princípios constitucionais que devem preservar e defender. E ficamos, ainda, sob a ameaça da coisa piorar pelo endurecimento das políticas antidrogas, nos níveis estadual e municipal, Brasil afora, especialmente nas administrações de extrema direita, e pela ação legislativa do Congresso Nacional, onde as forças fascistas, regressivas e os oportunistas, sem moral, dominam os temas de costumes, com um discurso religioso e policial.

Parte 2: A (ir)responsabilidade do setor de saúde pública

Não é certo atribuir aos juízes do STF a principal responsabilidades pelas suas contradições e omissões e pela fragilidade dos seus votos. De fato, eles foram unânimes em referir graves riscos à saúde pública como uma razão para o seu apoio irrestrito à lei antidrogas de 2006. Afinal, a intervenção do Estado contra a liberdade individual só pode ocorrer para proteger outra pessoa, ou um interesse coletivo, por uma razão coletiva. Praticamente todos os atores envolvidos na questão das drogas ilegais, seja qual for a corrente ideológica, buscam, sempre, sustentar seus argumentos em alegações de saúde e, explícita ou implicitamente, projetam gravíssimos danos à saúde pública com a legalização da maconha ou das drogas proibidas, em geral. Isto até parece ser evidente por si mesmo, não é? Se as drogas são proibidas, deve ser porque são muito perigosas e destrutivas para a saúde pública. E, ao fim, isto realmente se sustenta na posição de instituições médicas de respeitabilidade nacional e internacional.

Mas isto não é a verdade. Não há uma grande ameaça à saúde pública no Brasil por causa das drogas proibidas. Ao contrário, são as drogas legalizadas e a guerra contra as drogas ilegais que promovem os maiores, desproporcionalmente maiores, danos à saúde pública e à sociedade, em geral. Sobre a maconha, em especial, não pode haver qualquer dúvida científica ou médica a respeito, como os próprios juízes do STF indicaram em seus votos.

A triste verdade é que, na questão das drogas o enviesamento e a distorção da ciência, associados à omissão, ao oportunismo e à contradição das instituições da área da saúde impõem um preço muito alto para a sociedade. Isto cria um ciclo vicioso realmente perverso, sustentando um sistema de opressão e violência, uma verdadeira necropolítica, com o custo de muitos milhares de vidas todos os anos no nosso país.

Não é de se estranhar que as instituições públicas da área médica, sob o controle da extrema direita, abracem as piores motivações ideológicas e políticas, aquelas que se prestam à conservação e perpetuação da estrutura de poder e dominação, extremamente violenta, que caracteriza o nosso país. A irresponsabilidade criminosa da extrema direita no setor de saúde apareceu, de forma evidente, no absurdo endosso à prescrição de medicamentos ineficazes durante uma pandemia mortal e também na recente tentativa de impor ainda mais restrições e ameaças aos médicos que praticam o aborto legal, nos casos de estupro, no nosso país. Mas, quando se trata de condenar e criminalizar as drogas ilegais, inclusive a maconha, no entanto, por mais que sejam as mesmas instituições, e pelos mesmos motivos ideológicos e políticos, perversos e regressivos, isto não aparece claramente. Ao contrário, estas instituições surgem como um esteio técnico confiável e toda uma legião da boa vontade, em toda a sociedade, inclusive grande parte da esquerda, simplesmente repete o que as forças de extrema direita disseminam.

A falsa argumentação, médica e científica, de saúde pública para a condenação e o terrorismo em relação às drogas é, de fato, um dos principais pilares do fascismo cotidiano aqui no nosso país. Mas os dados de saúde pública desmascaram facilmente um discurso pretensamente científico, como veremos adiante.

Vamos começar considerando o percentual estimado de usuários de drogas psicoativas, em relação à população, aqui no Brasil. Em ordem decrescente, temos: álcool (45%); medicamentos psiquiátricos (20%); tabaco (10%); maconha (5%); cocaína (2,5%); Crack (0,5%).

Estes dados podem estar, todos, subestimados, mas dão uma ideia razoável da posição relativa, do peso proporcional, das drogas psicoativas na preferência popular nacional, na atualidade. Entre as drogas lícitas, o consumo de tabaco (cigarros) está decaindo, mas o uso de medicação psiquiátrica é crescente, a frequência do uso abusivo de álcool (25% da população) também está aumentando, assim como está aumentando a frequência de pessoas mortas em acidente de trânsito com álcool no sangue (44% do total).

Ao comparar tal distribuição dos usuários na população com mortes e internações relacionadas diretamente ao uso de drogas, fica claro que o peso das drogas recreativas legais e das drogas psiquiátricas, no adoecimento e na mortalidade, além de ser muitas vezes maior do que aquele das drogas ilegais, também é, em geral, maior do que a proporção esperada. Uma rápida revisão dos dados do DataSUS para mortalidade (2022) e para internações hospitalares (2023) permite sustentar, sem muita margem de dúvida, tais afirmações. Isto indica, fortemente, que estão legalizadas, para uso recreativo e a prescrição médica, drogas mais perigosas para a sociedade do que as proibidas. Com relação à maconha, em especial, isto é absolutamente inegável. Parece, contudo, que não querem que a população, em geral, saiba disto.

Vamos aos dados.

Em se tratando de mortes por transtorno mental ou intoxicação (overdose) causadas pelo uso de drogas psicoativas, o Brasil tem registradas, anualmente, algo próximo de 9.000 mortes por bebidas alcoólicas (62% dos casos), 3.000 por tabagismo (21%), 1.000 por drogas psiquiátricas (7%), 800 por crack /cocaína (5%) e 500 por outras drogas ilícitas (3%). Por maconha e por cafeína seriam menos de 30 casos (<0,2%), cada. Certamente, nenhuma morte por intoxicação (overdose) pode ser atribuída ao uso de maconha, simplesmente porque isto nunca ocorreu. No tocante às mortes por doenças orgânicas são, aproximadamente, 12.000 por doença alcoólica do fígado, enquanto as mortes por enfisema (DPOC) e câncer de pulmão devidos ao tabagismo somam 30.000 ao ano. Com base nos conhecimentos atuais, não se pode atribuir mortes por doenças orgânicas ao uso de maconha, porque não há nenhuma evidência científica, nem mesmo indício consistente, neste sentido.

Em termos de mortalidade é, portanto, bastante razoável constatar que, hoje, no Brasil, o peso das drogas legalizadas é muito maior do que aquele das drogas proibidas, em geral, e infinitamente maior do que aquele da maconha, especificamente. Além disto, estima-se que, todos os anos, acontecem, no Brasil, pelo menos 10 mil mortes, talvez bem mais, por violência ligada ao tráfico de drogas. É claro que estas mortes são totalmente enviesadas e atingem quase exclusivamente, jovens pobres, de baixa escolaridade e negros. E são, realmente, várias vezes mais mortes do que aquelas provocadas pelo uso das drogas ilegais, em geral, e muitas centenas de vezes mais do que aquelas atribuídas à maconha.

O mesmo se repete, em linhas gerais, quando consideramos os dados de internação, o que nos permite uma visão aproximada do impacto sobre o adoecimento e a incapacitação das pessoas. O álcool, o crack /cocaína e as drogas psiquiátricas são, nesta ordem, as três principais causas das 75.000 internações anuais para tratamento psiquiátrico ou intoxicação (overdose) por drogas psicoativas no nosso país. Estas três causas, juntas, respondem pela grande maioria destes casos e os dados disponíveis indicam que o álcool seria o principal responsável por aproximadamente 50%, enquanto o uso de maconha responderia por menos de 2% deste total. Além disso, o tabagismo provoca 150 mil internações por DPOC e câncer de pulmão e as internações para tratamento clínico por doenças hepáticas associadas ao alcoolismo somam 28 mil, por ano. Doenças orgânicas muito graves, potencialmente incapacitantes e letais. Em contraste, não se registram internações por doenças orgânicas, diretamente ou predominantemente, relacionadas ao uso da maconha.

É preciso considerar ainda que, acima, estão contabilizados apenas os casos em que há uma evidência segura, clínica ou epidemiológica, de envolvimento direto da droga como causa da internação ou da morte. Mas, todos sabemos que grande parte das internações e mortes por outros tipos de câncer, por doenças cardiometabólicas, neurológicas, endócrinas, renais etc. estão relacionados ao uso de álcool ou de cigarro, como única causa ou em associação a outros fatores de risco. Do mesmo modo, as internações por acidentes de trânsito, violência e traumas, em geral, também estão, em grande proporção, associados ao uso de álcool.

A cada ano, portanto, o uso de nicotina e o uso de álcool estão ligados à ocorrência de centenas de milhares de mortes e de alguns milhões de internações, aos quais se somam os encarceramentos, traumas, sequelas e incapacitações, de todos os níveis e tipos, que também acontecem no Brasil, todos os anos, por causa da guerra “contra as drogas”. Comprometem milhões de familiares, além dos atingidos diretamente, com imenso prejuízo social e econômico para o país.

Este é, verdadeiramente, um grande problema de saúde pública e, portanto, deveria ser prioritário para todas as instituições da área no nosso país, principalmente aquelas com responsabilidade sobre a questão das drogas. Mas não parece ser assim, nem para a Anvisa, nem para o Ministério da Saúde. Muito menos, é óbvio, para a Associação de Psiquiatria ou para o CFM. Ao contrário, sobre este assunto, todos ignoram ou fingem ignorar a realidade e apenas reiteram e reforçam os preconceitos e a ignorância que predominam no senso comum, num círculo vicioso realmente perverso e macabro.

Pode-se questionar algumas das estimativas apresentadas acima, mas os dados são concretos e nada jamais poderá negar a diferença colossal entre os danos à saúde pública, causados pelas drogas recreativas legalizadas, pelas drogas psiquiátricas e pela guerra “contra as drogas”, em contraste aos danos atribuíveis à maconha, mesmo quando estes são superestimados. Contudo, a proibição da maconha tem de ser sustentada, de um jeito ou de outro, em alegações de saúde pública. Portanto, os dados epidemiológicos são solenemente ignorados e os atores, dos mais diversos espectros ideológicos e níveis científicos, repetem os mesmos preconceitos, aceitam e disseminam as mesmas informações distorcidas e manipuladas, as mesmas fake news.

Falam que a maconha causa problemas fisiológicos, mas não são capazes de dizer quais ou apenas repetem suposições baseadas em casos anedóticos. Efetivamente, até o momento, não se demonstrou a associação da maconha ou de canabinoides com nenhuma doença orgânica. Apenas o hábito de fumar maconha está associado a um maior risco de transtornos inflamatórias de orofaringe. O que se evitaria com o uso de vaporização ou outras vias de administração. E é só isto. Não há evidência, nem indicação consistente, de nenhum aumento do risco de DPOC ou câncer de pulmão, nem de qualquer outro tipo de câncer, com o hábito de fumar maconha.

Seria, então, o risco de esquizofrenia, este risco tão terrível à saúde pública, que poderia justificar a proibição da erva? Isto também não se sustenta sob qualquer prisma de saúde pública. Antes de tudo, porque não há consistência nos dados científicos para se concluir que haja uma relação causal entre uso de maconha e o desenvolvimento de esquizofrenia. Os dados populacionais, em geral, não mostram aumento de frequência de esquizofrenia associado ao aumento da frequência de uso de maconha, seja comparando diversas populações, ou em uma mesma população, ao longo do tempo. Por seu turno, nos estudos clínicos, quando se controla o risco familiar e o risco pessoal prévio, os resultados não permitem afirmar com segurança que há uma incidência maior de esquizofrenia entre os jovens usuários de maconha.

Além disso, a possibilidade de que a associação entre os esquizofrênicos e a maconha se deva, principalmente, ao tratamento espontâneo, que eles encontraram na erva, é mais razoável na perspectiva clínica e coerente com os dados populacionais. Mas, mesmo aceitando a imputação de que a maconha seria um fator causal de esquizofrenia, o peso disto na saúde pública seria mínimo. Estima-se que, em uma sociedade com taxa de uso da erva bem maior do que a nossa, como é o caso da Dinamarca, apenas algo como 5% dos casos de esquizofrenia poderiam ser atribuídos ao uso de maconha. Portanto, mesmo com base em projeções de estudos manipulados contra a maconha, devemos concluir que qualquer aumento na frequência de uso da erva, no Brasil, teria um impacto muito pouco significativo na própria incidência de esquizofrenia e, verdadeiramente, apenas marginal ou desprezível para a saúde pública como um todo.

A atribuição de risco de esquizofrenia causado pela maconha é, de fato, inconsistente e, mesmo que fosse real, não consistiria um importante risco para saúde pública no Brasil. Esta não poderia, portanto, ser esta a causa técnica, de saúde pública, para a sua proibição. Pode ser que se queira imputar à alta incidência de dependência da maconha, então, a justificativa para a sua proibição. Porém, mais uma vez, os dados apontam em sentido completamente contrário: as drogas liberadas encontram-se nos níveis mais altos de risco e a maconha nos níveis mais baixos. A taxa de dependência, na vida toda é próxima de 70% para usuários de nicotina; para o álcool e crack/cocaína em torno de 30%; para benzodiazepínicos acima de 20%; e, por fim, abaixo de 10% para a maconha. Além disso, a clínica canábica mostra que grande parte dos casos considerados como de dependência de maconha são, justamente, de pessoas em tratamento espontâneo de diversos transtornos neuropsíquicos.

Falam, ainda, que a dependência de maconha é responsável por perda de desempenho cognitivo e social, por eventual perda de memória e por uma “síndrome amotivacional”. Estas inferências surgem, sobretudo, a partir da clínica psiquiátrica, assim como no caso do risco para a esquizofrenia e para outros distúrbios psíquicos. Uma clínica que está, em geral, completamente inserida e alinhada com o contexto proibicionista, onde predominam o preconceito e a distorção das informações contra as drogas proibidas e contra a maconha, especificamente. Neste contexto é realmente muito fácil atribuir conflitos familiares e sociais, desalento e até preguiça mesmo a uma síndrome associada à dependência da erva. Mas, como acabamos de ver, a dependência de maconha é de fato muito baixa e ela não se apoia em sintomas orgânicos de abstinência, nem na fissura que advém deles. Não, isto não ocorre com a maconha.

É difícil, portanto, acreditar que a dependência por uma droga com estas características seja a principal responsável pelos quadros de desalento e fuga do sistema de educação e trabalho, de parte da nossa juventude. Mais uma vez, os dados da clínica canábica apontam em sentido contrário, mostrando que o uso medicinal da maconha, de canabinoides, pode resultar em melhoras significativas do desempenho cognitivo e social em várias doenças e sintomas psiquiátricos, como, notadamente, no autismo, no TDAH, na ansiedade e na depressão, assim como na dependência química, em doenças neurodegenerativas e em diversas doenças orgânicas crônicas.

Sob o prisma científico, o fato é que não existem dados populacionais e nem estudos prospectivos controlados suficientes e nem mesmo indícios de risco social ou à saúde pública suficientes para se proibir a maconha por este motivo.

Enfim, todas as evidências são de que não há, nunca houve, nem haverá risco ou problema de saúde pública realmente significativo devido ao uso de maconha aqui no Brasil que pudesse justificar a sua proibição. Por outro lado, vivemos sob altíssimos níveis de doença, invalidez e morte associadas ao uso das drogas recreativas liberadas, das drogas psiquiátricas e da guerra “contra as drogas”. Além do impacto em saúde pública tudo isto tem um impacto social e econômico elevadíssimo.

Como pode o setor de saúde, em geral, e o setor de saúde pública, em especial, ficar cego, ignorar, fingir que ignora ou, pior, distorcer tudo isto?

Os outros setores, o judiciário e o parlamento, por exemplo, podem realmente ignorar ou fingir que não sabem disto. Mas o setor de saúde, as instituições de saúde em geral e, mais do que tudo, as instituições de saúde pública com responsabilidade direta sobre a questão das drogas, não deveriam poder ignorar, nem fingir que ignoram isto. A posição destas instituições de saúde é reconhecida como primordial aqui. E deve mesmo ser assim, elas é que deveriam ser o principal pilar científico e técnico na questão.

O uso de drogas psicoativas e a realização de abortos são realidades fáticas e devem ser reconhecidos, pela área de saúde pública, como necessidades de saúde individuais A resposta da saúde pública para estas, assim como para todas as necessidades de saúde, deve ser técnica e atender aos valores básicos de preservar e promover a saúde coletiva, protegendo o bem estar e a produtividade das pessoas na sociedade. Mas, certamente, a melhor forma de se lidar com os casos graves de dependência química não é a internação em instituições de viés religioso e policialesco, que seguem protocolos não científicos, baseados no senso comum e religioso, no conceito de abstinência, no abuso da medicação psiquiátrica e da manipulação ideológica, de caráter religioso. Instituições onde a violência psicológica é o padrão e até a violência física é frequente, com a ocorrência de condições desumanas de alojamento e alimentação, estupros, espancamentos e torturas, numa frequência e falta de cerimônia que são assustadoras.

Também, certamente, não são o conhecimento científico e a responsabilidade de saúde pública que estão atuando ao se colocar a maconha na lista de drogas ilegais e deixar de fora o álcool e o cigarro e vários medicamentos psiquiátricos, muitas vezes mais tóxicos e prejudiciais à saúde do que os canabinoides. Ao contrário, a mensagem anticientífica, falsa e absurda que se passa é que estas seriam as drogas menos tóxicas, mais seguras e menos prejudiciais à saúde pública, já que são as liberadas. Assim, população é enganada e induzida ao erro contra a própria saúde. E ainda se promove, deste modo, a violência fascista e assassina, contra grupos sociais específicos.

Ao compactuarem com os preconceitos sociais e não atuarem conforme o seu mandato institucional, técnico e científico, tais instituições estão, todas, fazendo rodar a roda de uma política cotidiana de morte e sofrimento social. Acabam, involuntariamente, como corresponsáveis por parte da mortalidade, da invalidez e do adoecimento devido às drogas permitidas, às drogas psiquiátricas e à “guerra às drogas”, com um custo social extremamente alto.

Nenhum médico responsável e atento pode continuar a receitar um remédio que faz muito mais mal do que a própria doença. Se isto é válido em relação aos doentes individuais, mais ainda deve ser em relação à saúde pública.

Fonte: Outra Saúde / Foto Paulo Pinto | Agência Brasil

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