Na série Filme com o Especialista, professores da USP comentam trailers de filmes a partir de suas experiências de pesquisa, ensino e extensão
Domingo, 12 de setembro de 2021
Amanda Mazzei e Victória Borges
Segundo título brasileiro na história a vencer o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, Bacurau é um filme de 2019 escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Difícil de definir, o longa se enquadra em vários gêneros, como drama, faroeste, terror gore, fantasia e ficção científica.
Ao longo dos 132 minutos do filme, acompanhamos a história de Bacurau, pequena cidade fictícia no oeste de Pernambuco. Pouco tempo depois da perda de sua matriarca que morreu aos 94 anos, os habitantes precisam lidar com uma situação muito estranha e perigosa: subitamente, Bacurau é excluída dos mapas na internet, e enquanto drones sobrevoam os céus da cidade, estrangeiros que planejam exterminar toda a população promovem “caças” e deixam um rastro de cadáveres. Depois de descobrir a origem dos ataques sistemáticos a seus cidadãos, Bacurau vai se organizar coletivamente para se defender dos assassinatos e do projeto de apagamento da cidade.
Entre a transgressão e a reafirmação de estereótipos, Bacurau acerta, mas também erra bastante. Isso é o que dizem os pesquisadores Valéria Barbosa de Magalhães, coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (GEPHOM) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP Leste, e Cristiano Filiciano, membro do grupo.
“Apesar dos muitos méritos que esse filme tem, o triste é que ele acaba atribuindo a violência mais às vítimas da estrutura do que aos invasores”, defende Valéria. Ela considera que, apesar de conseguir fazer transgressões no campo da sexualidade e do gênero, e de discutir questões políticas importantes, como sistemas de opressão, violências de classe e imperialismo, o filme peca por reforçar estereótipos de um Nordeste “único, rural, tradicional, seco, pobre e violento”.
Em relação aos acertos de Bacurau, Filiciano destaca a construção de Lunga, justiceiro que aparece como uma pessoa forte e destemida, sem que a identificação como LGBT seja o principal argumento para sua existência como personagem, ainda que a transgressão do justiceiro às normativas sociais de gênero e sexualidade seja constante no filme. “Toda a imagem do Nordeste foi criada em cima da figura do ‘cabra macho’, e Bacurau, assim como boa parte dos filmes da última década do cinema nordestino, principalmente pernambucano, quer confrontar esse estereótipo e mostrar que uma outra masculinidade é possível.”
“Se for, vá na paz” é a mensagem escrita na placa que aponta a entrada de Bacurau, cidade fictícia que dá nome ao filme, localizada no sertão pernambucano. A frase aparentemente é um recado inofensivo aos que chegam ao povoado, mas, para Filiciano, ela representa mais do que isso.
“Essa placa desconstrói toda a imagem de que lá eles são completamente receptivos. Eu entendo ela como uma ameaça. Sim, são educados, hospitaleiros, têm suas culturas, mas não mexa com o que é deles. Essa mensagem já é muito forte no filme”, comenta o pesquisador.
No entanto, a coordenadora aponta que os elementos do filme reforçam a ideia de que as populações periféricas só conseguem vencer pela violência. Para Valéria, os estereótipos não param na agressividade da narrativa, mas também estão presentes na representação “da seca, do interior, das vestimentas, como se o Nordeste inteiro fosse uma coisa só”.
“Tem uma disputa desses grupos, que são vítimas de estereótipos e preconceitos, para que a memória deles também possa ser validada. Existem milhões de “Nordestes” dentro do Nordeste. São várias memórias em conflito com uma memória sudestina, que é hegemônica, sobre o que é essa região.”
História oral e memória
Fundado em 2009 na EACH, o GEPHOM pesquisa questões teóricas e metodológicas dos estudos em história oral e memória, produzindo textos, cursos de extensão, palestras, vídeos e eventos para o público externo. “Fazemos pesquisas em diversas áreas, mas dá para destacar as reflexões sobre o método da história oral e da memória, o campo das migrações inclusive do Nordeste para o Sudeste, e também as questões raciais e étnicas”, aponta Valéria.
A coordenadora destaca o que considera um aspecto inovador do trabalho do GEPHOM. “Estamos indo por um caminho diferenciado nas nossas pesquisas e estudos, que é a reflexão decolonial sobre a história oral, que não é a história oral do norte global branco e rico. Buscamos nos diferenciar dos modos dos países europeus e Estados Unidos de fazer história oral, países esses que são os principais produtores de teoria sobre o método da história oral.”
Fonte: Jornal USP