“Tudo em ‘Torto arado’ é presente no mundo rural do Brasil. Há pessoas em condições análogas à escravidão”

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O baiano Itamar Vieira Junior, cujo romance ganhou o Prêmio Jabuti, faz uma declaração de amor à terra ao escrever sobre as histórias de luta e resistência na Chapada Diamantina. Ela falará na edição virtual da Flip

JOANA OLIVEIRASão Paulo – 02 DEC 2020 – 05:23 EST

Quando Bibiana e Belonísia nasceram, tinham outros nomes. O baiano Itamar Vieira Junior tinha 16 anos quando começou a escrever Torto arado (Todavia), que ganhou narrativa, no entanto, permaneceu a mesma: a história de duas irmãs, contada a partir de sua relação com o pai e com a terra onde viviam. O título, retirado do poema Marília de Dirceu, de Tomás António Gonzaga, tampouco mudou. O que veio depois foi a vontade de levar a história para o sertão da Chapada Diamantina, longe da capital ou do Recôncavo Baiano, onde a maioria dos seus conterrâneos ambientam suas narrativas. “A gente fala do sertão, do semiárido, parece que se trata de uma coisa só, mas o sertão da Chapada tem uma regularidade de chuva, uma diversidade de paisagem, de mato, que salta aos olhos”, conta Vieira Junior, hoje com 41 anos, ao EL PAÍS, por telefone.

Profundamente influenciado pelas leituras de Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz, ele escreveu as primeiras 80 páginas da obra, mas o manuscrito se perdeu durante uma mudança da família. Vieira Junior só retomaria a história vinte anos depois, quando, formado geógrafo e funcionário público do INCRA, conheceu as realidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e assentados no sertão baiano e maranhense. “Ao longo de 15 anos, aprendi muito sobre a vida no campo e vi um Brasil muito diverso do que vivemos cotidianamente nas cidades. Existe uma vida muito pulsante no campo, uma vida que está em risco, porque essas pessoas vivem em constante conflito na defesa de seus territórios. Tudo isso reacendeu a chama de escrever Torto arado”, conta o escritor, que lembra que o Brasil é um dos países com maiores índices de violência no campo. No ano passado, foram registrados 1.883 conflitos, incluindo 32 assassinatos, de acordo com o levantamento anual realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Em 2017, quando escrevia a segunda —e definitiva— versão do romance, nove trabalhadores rurais com os quais Vieira Junior teve contato foram assassinados, seis deles em uma chacina. “Foi um ano brutal”, lembra. São as vidas e lutas dessa gente que estão contadas em sua obra, que acompanha a família das irmãs Bibiana e Belonísia no cotidiano de Água Negra, uma fazenda onde os trabalhadores aram a terra sem receber salário, tendo apenas o direito de construir casebres de barro que precisam ser reconstruídos a cada chuva, pois o fazendeiro não autoriza construções de alvenaria. Quando não estão plantando e colhendo nas terras do patrão, cultivam roças nos próprios quintais para comer e ganhar um pouco dinheiro vendendo abóbora, feijão e batata na feira. São quase todos negros, descendentes de escravizados libertos havia poucas décadas, como é o próprio autor. Descendente de negros escravizados vindos de Serra Leoa e da Nigéria e de indígenas Tupinambás, Vieira Junior construiu um sertão real, que tem vida e verde, graças, em parte, às histórias dos avós paternos, que viveram no campo, na região de Coqueiros do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano.

O torto arado que dá nome ao livro é um objeto que, usado pelos antepassados das protagonistas na lida com a terra, atravessa o tempo para representar essa herança escravocrata de tantas desigualdades. Narrado primeiramente por Bibiana, depois por Belonísia e, na terceira parte, por outra personagem, o romance já começa com o clímax de um acidente: crianças, as duas irmãs —filhas de Zeca Chapéu Grande, um líder comunitário e espiritual— encontram uma faca da avó Donana. A partir daí, a linguagem, central na narrativa desde a prosa melodiosa com que o autor escreve, torna-se ainda mais importante. O não dito é tão importante quanto o que está impresso no papel. Uma irmã torna-se a voz da outra, e, como estão descritos os gestos, mas não as palavras das personagens, o leitor não sabe quem foi mutilada até chegar a um terço do romance.

“Essa faca corta a vida das personagens muitas vezes, é um símbolo desse duplo que são as irmãs, que se dividem para depois ser uma só”, explica o autor, que participa, no sábado, da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ―neste ano pandêmico, o principal encontro do gênero do país será online. De fato, a dualidade é outra constante em Torto arado: a voz e o silêncio, o medo e a coragem, a fertilidade e a infertilidade, a cidade e o campo são alguns dos opostos que definem as irmãs. Enquanto Bibiana sonha em ser professora e foge para a cidade para se formar, regressando depois com uma família de muitos filhos, Belonísia é uma força da natureza, privada da maternidade e cuja única educação que lhe interessa são os ensinamentos do pai sobre a terra. Aos poucos, ambas desenvolvem uma consciência política ao seu próprio modo. Bibiana se aproxima de sindicatos e movimentos sociais para reivindicar seus direitos. Belonísia luta, quiçá sem saber que o faz, no campo, enfrentando a violência machista e a ganância dos poderosos. “Sua consciência política se expressa quando o gerente da fazenda chega e quer levar os melhores produtos da colheita e ela diz não. Mesmo que colhesse mais do que precisava, dividia com a família e os vizinhos para não ceder o alimento aos donos da terra”, exemplifica o autor.

Capa de 'Torto Arado', publicado pela Todavia.
Capa de ‘Torto Arado’, publicado pela Todavia.

Vieira Junior sempre teve claro que a história deveria ser protagonizadas por mulheres porque, primeiro, na sua própria família, os homens são coadjuvantes. “Depois, no meu trabalho, encontrei muitas mulheres ocupando o papel de liderança que os homens ocuparam no passado. Quase toda comunidade quilombola reconhecida pela Fundação Palmares é presidida por mulheres”, acrescenta. Sobre escrever com perspectiva de gênero sendo homem, o autor celebra a literatura como o lugar da alteridade. “É um espaço mágico que nos permite escrever de uma perspectiva mesmo que ela não seja diretamente nossa”, diz.

Cosmovisão

Além da roça, do rio, do chão, outro cenário protagonista em Torto arado são as noites de Jarê, religião praticada exclusivamente na Chapada Diamantina, que mescla referências da umbanda, candomblé, catolicismo, xamanismo e espiritismo, e que é regida pelos encantados, entidades presentes no cotidiano da comunidade para além da dimensão sobrenatural. É em constante contato com os encantados que Zeca Chapéu Grande prepara remédios e realiza tratamentos para curar o povo de Água Negra e é com a bênção deles que ele intermedia conflitos entre os trabalhadores.

Donana, a avó possuidora do fio de corte que marca a narrativa, também é um lembrete vivo do poder dessa dimensão espiritual. Falando sozinha —ou com personagens que o leitor não vê—, ela perambula pelo quintal e pela mata alertando as netas sobre o perigo de uma onça que parece existir apenas em sua mente. Mais tarde, descobre-se que a onça pode ser outro tipo de animal, desprovido de compaixão e movido pela ganância.

Obediência e insubordinação guiam o romance, que conta um Brasil que manda e outro que obedece, e o Jarê aparece como uma resistência espiritual, cultural e política muito antes das lutas sindicais. “Para além de uma religião, trata-se de uma cosmovisão, é a forma como essas pessoas entendem o mundo e sua realidade”, explica Vieira Junior.

E essa realidade é da profunda desigualdade brasileira forjada na escravidão, a partir da escritura fundiária e de fenômenos como a seca. A mesma realidade já contada nos romances das gerações de 1930 e 1945, como O Quinze, de Rachel de Queiroz. A mesma realidade que o autor constatou, em estado de choque, que se perpetua no século XXI. “Absolutamente tudo que é narrado em ‘Torto arado’ ainda é presente no mundo rural brasileiro em 2020. Ainda há pessoas vivendo no campo em condições análogas à escravidão ou em regime de escravidão mesmo”, afirma.

No seu trabalho, o geógrafo e escritor encontrou gerações inteiras de famílias descendentes de escravizados que ainda hoje dão seu trabalho aos donos da terra em troca do direito de morada, de um prato de comida. “A escravidão nunca nos abandonou, só fez mudar de nome. A abolição não foi acompanhada de políticas reparatórias, apenas assinou-se um papel, muito por pressão internacional”, lamenta Vieira Junior, que lembra que a luta de alguns abolicionistas era para que a liberdade viesse acompanhada de uma reforma agrária que garantisse um mínimo de dignidade.

“Depois da publicação do livro, perdi a conta de quantos leitores entraram em contato para dizer que os pais e avós viveram aquilo. Teve até um leitor baiano de uns 30 anos que que escreveu dizendo que viveu essa realidade com os pais, mas não sabia o nome daquilo, que se tratava de uma herança escravocrata”, conta.

Nesse contexto, a faca que decepa a língua de uma das protagonistas é o símbolo de um país também fraturado, dividido pela violência e pelo racismo. “E a língua ausente representa o silenciamento ancestral de mulheres que não são prioridade nas políticas públicas, que nunca apareceram na nossa literatura e não têm surgido com frequência em outras expressões artísticas no país”, acrescenta o autor, que pretende continuar colocando o dedo nessas feridas.

“Sou um autor brasileiro que escreve a partir da Bahia. E a Bahia reúne muitas das referências que espelham o que é este país, então, meu próximo romance continuará voltado para as questões da terra. Sempre concebi Torto arado como um projeto maior para falar dessa relação do homem com seu território”, diz ele. Já no ano que vem, Vieira Filho publicará pela Todavia um livro de contos em que as mulheres voltarão a ter protagonismo, bem como as lutas relacionadas ao chão. Afinal, no Brasil de 2020, a onça continua à espreita.

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