Um roteiro gastronômico pelo universo do ‘black business’ de São Paulo

Brasil gastronomia

‘Prato firmeza preto’ faz um mapeamento de empreendimentos gastronômicos de pessoas negras da capital paulista e região e tira a cozinha do lugar de servidão

MARINA ROSSI – São Paulo – 24 JUN 2021

No final de 2017, Gisele de Oliveira, 41, era motorista de aplicativo e só tinha 200 reais no bolso. Preocupada com a prestação do carro de mais de 900 reais que venceria dali a uns dias, pegou metade do que tinha na carteira, comprou carne moída, frango, mandioquinha e batata doce, fez 20 escondidinhos e congelou. No dia seguinte, colocou tudo em uma bolsa térmica e passou de loja em loja pelas ruas do bairro onde vive, Campo Grande, na zona sul de São Paulo, vendendo seus potinhos de comida congelada. “Em duas horas eu vendi tudo”, conta ela. “Poderia ter sido mais rápido se eu não ficasse conversando”, brinca. Ali, nascia o Levinho Fit, empresa de marmitas saudáveis.

Hoje, Gisa, como é chamada, vende cursos de empreendedorismo e gastronomia, é embaixadora de marcas do ramo alimentar e do esporte, também ganha dinheiro fazendo vídeos de receitas saudáveis no Instagram para gigantes da indústria e, claro, vende suas marmitinhas fitness. Além de tudo, ela ainda encontra tempo para correr, já que é corredora de rua. “O dia tem 24 horas, dá tempo de fazer tudo”, diz ela, da cozinha de casa, que passou por uma reforma para que ela gravasse dali mesmo seus vídeos.

A história de Gisa é uma das 34 iniciativas contadas no Prato firmeza preto, um guia voltado para empreendedores negros da Região Metropolitana de São Paulo. Essa é a quarta edição do Prato Firmeza, que se propõe a ser um roteiro gastronômico de lugares fora do circuito da região central da capital paulista. “Das quebradas”, como se autointitula, o guia que é produzido pela Énois Conteúdo. Mas é a primeira vez que a edição se volta exclusivamente para iniciativas mantidas por pessoas negras. Gabriella Mesquita, produtora e cofundadora da ideologia do Prato firmeza preto, explica que essa edição surgiu de uma demanda identitária de dentro da Énois. “Sempre falamos de territórios, sempre abordamos a periferia a partir de regiões e pela primeira vez quisemos falar de uma territorialidade”, conta.

Em busca de retratar com fidelidade essa territorialidade, o guia novamente é mais voltado para as franjas da cidade do que para o centro, embora essa região não esteja excluída da edição. Pelo contrário, No centro é a seção do guia que abriga as casas na região central de São Paulo. Doces e afetos é a editoria dedicada às sobremesas, onde o açúcar e a memória afetiva são os ingredientes principais. Já o Resgate e ancestralidade apresenta restaurantes cujas raízes estão nas cozinhas africana e indígena. E de tanto encontrar o acarajé como quitute estrela de casas que se propõem a fazer esse resgate, o nome do bolinho feito de feijão no dendê é dado a outra seção. Da quebradinha é a editoria que apresenta as casas da quebrada-raiz, cujos cardápios e os espaços foram pensados para o público dali, do bairro. Mas, como veremos mais adiante, recebe moradores de outras regiões também.

Mas além das editorias mais tradicionais, que trazem restaurantes e afins, o Prato firmeza preto tem outras três seções em que a comida não é necessariamente o coração do negócio. Black business conta histórias de empreendedores como Gisa. Além do Prato apresenta casos de negócios e projetos que ultrapassaram as barreiras das cozinhas. E Quem faz o corre, talvez a primeira vez que um guia se dedica a valorizar as histórias dos entregadores.

É nesta seção que está a história das Señoritas Courier, um coletivo de mulheres LGBTQIA+ entregadoras. A ideia surgiu quando a professora Aline Os, 44, começou a trabalhar também como entregadora para uma empresa. “Eu dava aulas a noite e fazia entregas de dia”, conta ela, que era a única mulher da companhia. “E como entregadora, eu voltei a experimentar algumas invisibilidades que eu não vivia mais”, diz. “Eu dava aula em um prédio e os seguranças toda noite me cumprimentavam, abriam a catraca para mim. Ali eu era a professora. Mas quando fui fazer entrega no mesmo prédio, de dia, fiquei invisível e ninguém me cumprimentou”, conta.

Aline Os, do Señoritas Courier, empresa de entregas formada por mulheres LGBTQIA+.
Aline Os, do Señoritas Courier, empresa de entregas formada por mulheres LGBTQIA+.RAONI MADDALENA / RAONI MADDALENA / LACARRETERA FILMES

Essa invisibilidade somada ao preconceito que via as mulheres sofrendo dentro do grupo de entregadores fizeram com que Aline quisesse ir além. “Mulher nenhuma parava na empresa, porque os caras o tempo todo testam a gente, duvidam da nossa capacidade”, diz. Daí surgiu a ideia de um coletivo só de mulheres e pessoas LGBTQIA+, que, no início da pandemia ganhou fôlego para sair do papel, já que o aumento da demanda por entregas cresceu muito. Hoje, com uma equipe de cerca de 30 pessoas, entre fixos e freelancers, Aline pensa em continuar expandindo. “O trabalho justo está na pauta. Por que hoje temos os aplicativos ganhando tanto e explorando quem faz entrega?”, questiona.

O plano da idealizadora dos Senõritas é desenvolver uma plataforma de cooperativismo no futuro. “A ideia é que funcione em função de quem está realizando o trabalho e não do empresário”, diz Aline. “A única forma de combater a precarização é correndo atrás de se juntar em coletivos, em cooperativas”.

Paris para a periferia

Daniel Neves de Faria, 40, é conhecido no Jardim São Luís, onde vive, como Daniel da Orpas. Seu apelido leva o nome do projeto social fundado por ele há 15 anos: Obras Recreativas, Profissionais, Artísticas e Sociais (Orpas), que se propõe a resgatar crianças e jovens em situação de vulnerabilidade por meio de ações socioeducativas. Se fosse o criador somente do Orpas, talvez Daniel estivesse na seção Além do prato deste guia.

Mas para manter seu projeto social, ele conta que precisava de negócios que, além de impacto social, também pudessem reverter parte do lucro para as ações no bairro. “Tive uma experiência em Paris e fiquei encantando com alguns restaurantes com aquele clima romântico, aquelas pontes cheias de cadeados de namorados”, conta. “Quis levar toda a periferia para Paris, o que não seria possível. Trouxe então Paris para a periferia e assim nasceu o Sônego Bistrô, para receber de forma aconchegante”. O nome da casa, que serve lanches, porções e pratos em um terraço com vista panorâmica de todo o bairro, foi uma homenagem ao patriarca da família, já falecido.

Daniel Neves de Faria, no Sônego Bistrô, no Jardim São Luís.
Daniel Neves de Faria, no Sônego Bistrô, no Jardim São Luís. RAONI MADDALENA / RAONI MADDALENA / LACARRETERA FILMES

No espaço do Sônego Bistrô, formado ao todo por quatro andares, é onde são realizadas também as oficinas de armazenamento de alimentos e de Plantas Alimentícias não convencionais (PANCs), sob a tutela da Orpas. “Além de restaurante, o espaço passou a fazer parte da formação da comunidade”, conta Daniel. “Trouxemos um menu-degustação em oito etapas para o restaurante, algo que só era possível para além da ponte do Socorro”. Hoje, ele conta que seus clientes não são somente os moradores da região. “Tem gente que sai lá da zona oeste para vir para cá”, conta ele, orgulhoso. “Hoje, o Sônego Bistrô, a Orpas e outros negócios de impacto social da periferia estão conseguindo inverter o norte da bússola quando se fala de cultura”.

Além do prato

Da tese de conclusão de curso do professor de geografia Wagner Ramalho, 41, e do seu desejo ir além da teoria, nasceu a ONG Prato Verde Sustentável. Com o intuito de combater a miséria e promover segurança alimentar e ambiental nas periferias, a ONG leva informação e comida de verdade para crianças, jovens e idosos do Jardim Filhos da Terra, na zona norte de São Paulo.

Tudo começou em 2013, quando Wagner propôs utilizar um espaço ocioso na Associação Mutirão, no bairro onde nasceu e cresceu. “Fiz a proposta de levar hortas pedagógicas para ali, em um lugar que estava praticamente abandonado”, conta. “No início não foi fácil. Havia vandalismo, demorou para que a identidade com a comunidade fosse criada”, diz. Hoje, no entanto, o projeto atende 500 alunos por mês, que aprendem noções de agroecologia, segurança alimentar, direito ambiental, agricultura familiar dentre outras disciplinas. Do terreno que era ocioso saem legumes, frutas e verduras que alimentam os alunos e são vendidas a preços acessíveis. Somente no ano passado, foram oito toneladas de alimentos colhidos da horta. E a renda é revertida para o projeto. “Muitas vezes, os alunos comem um alimento que nutre só aqui na associação”, conta Wagner. “Em casa comem massas, pizzas, que muitas vezes são mais baratas, mas não nutrem. É o chamado nutricídio, que ocorre nas periferias”.

Com o tempo, o projeto chegou a ser multiplicado, ganhando suas versões em outras duas regiões de São Paulo, o jardim São Luís, na zona sul, e o Parque Edu Chaves, na zona leste. Não à toa, o Prato Verde Sustentável está na seção Além do Prato da edição do guia. Aliás, as fronteiras do Prato Firmeza estão cada vez maiores. Se nesta edição as franjas da capital ficaram ainda mais distantes do centro, chegando a cidades da Região Metropolitana da capital, o próximo volume promete mais. “Deve ficar pronto ainda neste ano o Prato Firmeza Rio, só com lugares no Jacarezinho e em Manguinhos”, promete Gabriella.

 Wagner Golçaves Ramalho, criador do Prato Verde Sustentável, com crianças e adolescentes atendidos pela ONG na horta do projeto.
Wagner Golçaves Ramalho, criador do Prato Verde Sustentável, com crianças e adolescentes atendidos pela ONG na horta do projeto.RAONI MADDALENA / RAONI MADDALENA / LACARRETERA FILMES

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