Neste sábado, dia 1º, a orquestra faz o concerto de abertura do Festival de Inverno de Campos do Jordão com obras recuperadas de artistas pretos e pardos dos séculos 18 e 19
“Os maiores compositores brasileiros dos séculos 18 e 19 eram, sem exceção, ex-escravizados ou filhos deles”, defende o professor Rubens Russomano Ricciardi, maestro e regente titular da USP Filarmônica, orquestra ligada ao Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. São obras de alguns desses compositores – autores pretos e pardos do período colonial brasileiro – que a USP Filarmônica vai apresentar na abertura do Festival de Inverno de Campos de Jordão, neste sábado, dia 1º de julho, às 16 horas. No dia seguinte, a mesma apresentação será feita na Sala São Paulo, desta vez acompanhada pelo Coro Acadêmico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp).
O repertório dos concertos inclui obras de Manoel Dias de Oliveira, Antônio Carlos Gomes, Anacleto de Medeiros, João de Deus, Pixinguinha e José Maria Xavier. “A história da música brasileira é impensável sem eles. Eles foram protagonistas com suas forças poética e inventiva”, afirma o maestro.
Ricciardi defende que definir a arte a partir da branquitude apaga a atuação de pessoas pretas e pardas. “Elas fundaram a nossa história e inauguraram o que permanece e o que teria permanecido se fossem lembradas. Foram grandes mestres e inventores de linguagem”, analisa.
O professor Rubens Russomano Ricciardi, maestro e regente titular da USP Filarmônica – Foto: IEA/USP
O maestro argumenta que a leitura modernista e acadêmica do século 20 causou o esquecimento dos compositores pretos e pardos. “Os teóricos da literatura e da arte determinaram que isso não era importante e que eles não deveriam ser lembrados. Mas até o começo do século os artistas tinham prestígio e circulavam por diferentes gêneros musicais”, explica.
O compositor Domingos Caldas Barbosa, conhecido pelo pseudônimo de Lereno, inventou a canção popular brasileira no século 18, mas foi esquecido da história. O mesmo aconteceu com Manoel Dias de Oliveira, compositor de canções devocionais não litúrgicas, cujas obras eram mais lidas e populares do que poesias árcades, esclarece Ricciardi.
As composições foram recuperadas por membros do Núcleo de Pesquisa em Ciências da Performance em Música (NAP-Cipem) do Departamento de Música da FFCLRP. “Essa é uma oportunidade de mostrar toda a pretitude da música brasileira”, destaca o maestro.
Segundo Ricciardi, há um desconhecimento da história da música brasileira. Ele acredita que os principais artistas do País vieram das camadas oprimidas da sociedade. “A arte brasileira não era de elite e não era atrasada. Os autores faziam a música de seu tempo e criavam suas próprias ordens”, diz.
O compositor Domingos Caldas Barbosa, filho de uma escravizada angolana, foi formado pelos jesuítas no Morro do Castelo, no Rio de Janeiro – Imagem: Domínio público / Wikimedia Commons
O trabalho do grupo de pesquisa consistiu na recuperação de manuscritos encontrados em diferentes arquivos. Os pesquisadores buscaram documentos no Museu da Inconfidência e na Casa do Pilar, em Ouro Preto (MG), na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro (RJ), no Centro de Ciências, Letras e Artes, de Campinas (SP), no Museu da Música, em Mariana (MG), e outros acervos em Portugal.
Cada manuscrito possui um diferente estado de conservação. Por isso, as metodologias de restauro foram variadas. Uma das obras recuperadas do compositor Manoel Dias de Oliveira foi redigida à mão por ele mesmo, o que dá mais segurança à edição e permite reconstituir a totalidade da intenção do autor.
Já Encomendação de Almas e Manto Supremo, também de Manoel Dias de Oliveira, foram encontradas em cópias dos originais. Nesse caso, o NAP-Cipem realizou uma edição crítica das obras. “É preciso fazer uma leitura, uma intervenção interpretativa que reconstrói a memória. As fontes tardias não dão todas as respostas”, detalha Ricciardi.
Encomendação de Almas e Manto Supremo, de Manoel Dias de Oliveira – Foto: Reprodução/YouTube
A oralidade precisa ser reconstituída nas músicas, assim como a percussão, que não era registrada nos manuscritos do período. A interpretação inclui ainda fazer um acompanhamento para as composições ou criar os arranjos. É o caso da canção Carinhoso, de Pixinguinha, da qual Ricciardi foi arranjador.
A USP Filarmônica é composta com alunos do curso de Música da USP em Ribeirão Preto. Além da pesquisa, é um projeto de ensino que trabalha com inovação nos palcos. “Somos um laboratório da práxis musical e da reconstrução de linguagens em prol da arte brasileira”, relata Ricciardi.
Pixinguinha – Foto: Reprodução/Wikipedia
A temporada de 2023 da USP Filarmônica foi aberta em abril também com um repertório de compositores pretos e pardos dos séculos 18 e 19, mas os concertos de julho trazem novidades. As composições de Manoel Dias de Oliveira nunca foram tocadas e, neste sábado, dia 1º, na abertura do Festival de Inverno de Campos do Jordão, a orquestra as apresenta pela primeira vez. Para Ricciardi, os concertos e a pesquisa são formas de recuperação da memória e da ancestralidade musical através do repertório. “Minha missão é trazer para o som o que estava em silêncio”, diz.
No dia 1º de julho, sábado, às 16 horas, a USP Filarmônica abre o Festival de Inverno de Campos do Jordão, no Parque Capivari (Rua Engenheiro Diogo José de Carvalho, 1.291, Capivari, Campos do Jordão). Entrada gratuita. Sem necessidade de retirada prévia de ingressos. Detalhes da programação podem ser encontrados no site do festival.
No dia 2 de julho, domingo, às 11 horas, a USP Filarmônica se apresenta na Sala São Paulo (Praça Júlio Prestes, 16, Campos Elíseos, São Paulo). Entrada gratuita. Os ingressos podem ser retirados pela internet ou nos totens localizados no piso térreo da Sala São Paulo. Mais informações no site da Sala São Paulo.
Fonte: Jornal da USP