Vocês não estão sós: vitória brasileira no Festiva de Locarno tem recado para artistas do país

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Ameças contra a democracia no Brasil fazem parte do contexto do prêmio reccebido pelo filme de Julia Murat

O filme “Regra 34”, dirigido pela cineasta carioca Julia Murat, ganhou o Leopardo de Ouro de melhor filme internacional em competição no Festival de Cinema de Locarno, na Suíça, no último sábado (13). Depois do anúncio, Murat e sua equipe concederam uma coletiva para a imprensa. 

Talvez para os não brasileiros, tenha passado despercebida ou tenha sido minimizada a frase de Julia sobre o risco de um golpe de Estado no 7 de setembro. Um dia antes de ter sido premiada, após a projeção do seu filme e de uma entrevista de sua equipe para a imprensa, Julia havia me falado desse risco e me aconselhado a adiar qualquer viagem ao Brasil: “vamos ter pelo menos uns seis meses de agitações”. Ela também não estará mais lá: vai fazer um mestrado de dois anos de cinema nos Estados Unidos.

Na sexta-feira (12), o jornal francês Libération dedicava cinco páginas à campanha eleitoral no Brasil, com a manchete “A democracia em jogo” e ampla reportagem da correspondente Chantal Rayes. O jornal Le Figaro, também de Paris, repercutiu igualmente as mobilizações do 11 de agosto, com a leitura da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”. E o jornal alemão Der Spiegel publicou uma entrevista sob o título “Vivemos um momento de conflito”, com o ex-presidente Michel Temer, no qual ele expressava seus temores de um golpe antes das eleições no Brasil. 

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É nesse contexto político brasileiro, do conhecimento da direção do Festival, que acontece a premiação do filme “Regra 34” e a razão do prêmio ter sido acompanhado de uma menção de apoio ao cinema brasileiro. Uma espécie de mensagem aos intelectuais e artistas brasileiros do tipo “vocês não estão sós”. Esses tipos de mensagens eram comuns durante a Ditadura militar.

Uma delas, logo depois do golpe, foi por ocasião do primeiro Festival do Teatro Universitário de Nancy, em 1965, quando ganhou a peça “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, do Teatro Universitário da Universidade Católica, TUCA. E, logo depois, em 1967, foi “Terra em Transe” de Glauber Rocha, o primeiro filme brasileiro a ganhar o primeiro prêmio, na competição internacional do Festival de Locarno. “Regra 34” é agora o segundo filme com o mesmo prêmio, todas as honras a Julia Murat. 

Abaixo, veja falas de Julia Murat e da atriz Sol Miranda, que vive a protagonista Simone e hoje é candidata a deputada federal pelo PSB do Rio de Janeiro, sobre o filme e a realidade social brasileira:

Sol Miranda – Quando me convidaram para o projeto do filme, meu primeiro projeto audiovisual como atriz, me pareceu um tanto contraditório com minha realidade. Na época eu estava dirigindo um fórum de discussão sobre as artes negras no Rio de Janeiro, uma mediação de políticas públicas entre ONGs e o poder público. Havia um debate sobre negritude, feminismo e o lugar, o protagonismo dos artistas negros naquela realidade. Julia tinha uma sala, na qual nos reuníamos para a construção dos nossos personagens. Simone é uma personagem muito distante de mim na vida real, embora tenha uma atividade na política que se aproxima da minha realidade de hoje, sou candidata a deputada federal. O filme foi um desafio, aqui foi a primeira vez que vimos o filme numa tela. Vou também acreditando no poder que o cinema tem no domínio da arte e da revolução.

O país [Brasil] não é um país democrático. Embora tenhamos um discurso de retomada da democracia, o Brasil nunca foi democrático porque as desigualdades existem, e onde há desigualdades não há democracia. Hoje estamos vivendo um processo muito violento, a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. O Brasil é também um dos países mais violentos contra LGBTs. É também um dos países mais violentos contra mulheres e especialmente mulheres negras. O Brasil tem muita violência e falta de respeito com as pessoas que moram nas favelas. 

Hoje o debate está voltado para a construção de um país que nos respeite como indivíduos e entenda a nossa diversidade de afetos, a nossa diversidade racial, e a impossibilidade de termos nossas casas como favelados e faveladas sendo violentadas pelo poder do Estado. Existem alguns debates de mulheres feministas sobre liberdade sexual, mas hoje esse debate é considerado secundário porque estamos lutando pela vida. Essa luta é hoje urgente no Brasil, porque estamos morrendo. O Ministério da Cultura foi o primeiro que Bolsonaro extinguiu e, com o passar do tempo, muitos dos nossos direitos estão sendo extinguidos. As nossas crianças estão morrendo, seja por fome ou violência do Estado, seja por um processo que não nos permite vivenciar nossas próprias histórias. 

Julia – Eu acho que o mundo está em transe. Estamos num momento de revolução mundial e há uma disputa narrativa acontecendo. E não sei quem vai ganhar, mas eu espero que quem ganhe construa um mundo no qual a gente não precise mais de castings para se identificar. O Brasil tem muita violência e falta de respeito com as pessoas que moram nas favelas. 

Eu não conhecia o BDSM antes de fazer o filme e fiquei muito fascinada com esse universo, porque ele produz muito conhecimento. Existe também muita literatura sobre as práticas a fazer. Um dos seus conceitos mais importantes é a consensualidade. A ideia é a de que os acordos devem ser feitos previamente. Outra coisa, o BDSM faz parte da nossa sociedade, e enquanto parte da sociedade, também estão incluídas as práticas patriarcais machistas e racistas. 

*O jornalista Rui Martins está no Festival Internacional de Cinema de Locarno, um dos mais importantes e antigos do mundo, ocorrendo anualmente desde 1946.

Edição: Nicolau Soares

Fonte: BDF

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