A regulamentação das licitações: sempre existe uma novidade

justiça

Por Fabrício Motta – Quinta, 10 de novembro de 2022

A discussão sobre as normas gerais em matéria de licitações e contratos é antiga, infindável e, talvez, enfadonha. Entretanto, o tema acaba voltando à moda sempre que o Executivo federal exerce sua competência regulamentar (em sentido amplo), o que tem sido feito, atualmente, por meio do uso de algum instrumento talvez assemelhado a uma metralhadora normativa. Recentemente, por exemplo, foi editado o Decreto nº 11.246, de 27/10/2022, que estabelece regras para a atuação dos diversos agentes públicos nas licitações, vindo a integrar o mesmo mundo complexo no qual já habitam as Instruções Normativas editadas pela Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia (Seges).

“A lógica da nova lei no tocante à questão central tratada neste estudo é clara: induzir comportamentos considerados modelos ou práticas consideradas evolutivas, pautadas na experiência da administração pública federal, expandindo as consequências positivas para a eficiência e a eficácia das contratações dos demais entes, e a construção de um ambiente de contratações públicas uniforme, em diversos aspectos, diante dos potenciais benefícios econômicos que isso pode acarretar. De fato, não há certeza quanto ao real espaço para a ‘criatividade útil’ em sede de competência suplementar, não sendo equivocado pensar que as normas da Lei nº 14.133/21 podem, afinal, espelhar boas ou ideais soluções. Contudo, para evitar os efeitos perversos das regras materialmente inaplicáveis, do formalismo burocrático, da insegurança jurídica e do controle centrado em meios, é fundamental que se busque clarear o espectro da atuação legislativa e regulamentar compatível com os limites da autonomia federativa” [1].

Interessante perceber, em um primeiro momento, a falta de sistematicidade no uso da competência regulatória federal. As regras para atuação dos agentes que intervém no ciclo licitatório foram estabelecidas em Decreto, enquanto as normas para a observância da ordem cronológica de pagamento foram estabelecidas em Instrução Normativa (IN Seges/ME nº 77, de 4/11/2022), ambos direcionados para administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Interessante ainda verificar como a lógica expressa pela máxima “meus recursos, minhas regras” foi estabelecida de forma diferenciada nos diplomas referidos: o Decreto, ato normativo de maior hierarquia editado pelo presidente da República, faculta aos estados e municípios que utilizem recursos federais oriundos de transferências voluntárias a observação de suas disposições (artigo 2º do Decreto nº 11.246/22), enquanto que a instrução normativa, diploma inferior hierarquicamente, obriga a observância de suas regras, nas mesmas situações.

No que se refere à obediência da ordem cronológica de pagamentos, a IN Seges/ME nº 77, de 4/11/22 repete em grande parte o disposto no artigo 141 e seguintes da Lei nº 14.133/21, mas traz regras importantes. O tema é essencial e tem enfrentado desafios concretos desde a edição da Lei nº 8.666/93, em razão do disposto em seu artigo 5º. Na prática, a regra materializa os princípios da moralidade, impessoalidade e eficiência, objetivando impedir que o gestor possa escolher quem será beneficiado primeiramente com os pagamentos, estabelecendo privilégios e perseguições. A significância da questão tratada para o interesse público é comprovada também pelo tipo do crime de “modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo”, cujo núcleo contém a conduta de pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade” (artigo 337-H do Código Penal, acrescido pela Lei nº 14.133/2021).

A relevância do tema já havia inspirado a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) a orientar os Tribunais de Contas na fiscalização do cumprimento do dispositivo legal. Com efeito, na Resolução Atricon nº 8/2014 os tribunais foram orientados a

“Promover ações junto aos jurisdicionados, visando à edição de lei local e/ou decreto que regulamente o cumprimento do art. 5º da Lei 8.666/93, contemplando, no mínimo: a. a ocasião em que o credor deverá ser inserido na respectiva sequência, considerando (i) a demonstração, para o ingresso na fila, do adimplemento da parcela contratual mediante a apresentação de fatura ou documento equivalente pelo contratado, a ser confirmada na liquidação da despesa e (ii) o cumprimento das demais condições legais e contratuais exigíveis, como a regularidade fiscal, trabalhista e com a seguridade social, dentre outras, também a serem confirmadas na liquidação da despesa; b. as hipóteses de suspensão da inscrição do crédito na ordem cronológica de pagamento, em razão da ausência de demonstração do cumprimento das condições legais e contratuais pelo contratado; c. a fixação de prazo máximo para a realização da liquidação e para o efetivo pagamento, a contar do ingresso na linha de preferência, ou para a rejeição dos serviços prestados ou bens fornecidos, por desatendimento das exigências legais ou contratuais; d. as situações que poderão vir a constituir, ainda que não de forma taxativa, relevantes razões de interesse público, a permitir excepcionar a regra da ordem cronológica, a propósito do que estabelece a parte final do artigo 5º, caput, da Lei nº 8.666/93”.

Além das mudanças advindas do tratamento normativo dispensado pela Lei nº 14.133/21, a nova regulamentação editada pela Seges atende, em linhas gerais, ao que fora recomendado pela Atricon aos tribunais. Inicialmente, é relevante destacar o estabelecimento de prazos para a liquidação da despesa e para o pagamento (artigo 7º IN Seges/ME nº 77, de 4/11/2022) [2]. A regra conecta, acertadamente, a liquidação e a exigibilidade, não deixando margem de manobra para que o gestor público decida quando os adimplementos (cumprimento das obrigações contratuais pelo particular) devem ser enviados para liquidação. Sem prazos e na linha de “criar dificuldades para vender facilidades”, seria possível que o particular cumprisse sua obrigação contratual e o processo de liquidação repousasse indefinidamente sob a má vontade do gestor. Ainda a respeito da liquidação, a IN acertadamente remete à observância do disposto no artigo 63 da Lei nº 4.320/64. Por outro lado, é importante a valorização da motivação e da justificativa para realização de atos que não atendam às prescrições dos prazos. A solução adotada pela instrução normativa segue a tendência de valorizar a motivação dos atos de gestão e a qualidade do gasto, reconhecendo a possibilidade de que existam alternativas para que o gestor busque a decisão mais adequada em situações específicas. A própria exiguidade do prazo (dez dias), por exemplo, pode ser impeditiva para o cumprimento em unidades administrativas com menor estrutura ou fluxos de execução da despesa mais demorados.

Retomando a discussão sobre as normas gerais, há consenso no entendimento de que detalhes devem ser objetos de normas específicas, próprias de cada ente federativo. Nada impede que estados, Distrito Federal e municípios optem por permanecerem abrigados sob as normas ditadas pela União, elaboradas para a realidade federal por equipes altamente qualificadas. Porém, copiar nem sempre é a solução [3] — realidades mais simples em estruturas administrativas menores não podem ser ignoradas no exercício da competência normativa, sob pena de comprometer a eficácia dos dispositivos com potencial inovador da nova lei.


[1] PÉRCIO, Gabriela Verona; MOTTA, Fabrício. Normas gerais eregulamentos na nova Lei de Licitações e Contratos: da teoria à prática.Fórum de Contratação e Gestão Pública — FCGP, Belo Horizonte, ano 20, nº 238, p. 49-60, out. 2021.

[2] Art. 7º — Os prazos de que trata o art. 6º serão limitados a: I – 10 (dez dias) úteis para a liquidação da despesa, a contar do recebimento da nota fiscal ou instrumento de cobrança equivalente pela Administração; II – 10 (dez dias) úteis para pagamento, a contar da liquidação da despesa

[3] https://www.conjur.com.br/2021-jul-22/interesse-publico-planejamento-licitacoes-copiar-uniao-nunca-solucao

Fonte: Conjur

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