Artigo | Carnaval de Salvador: continua o ‘apartheid’?

cultura

A festa controlada por empresários exclui a maioria negra da população da cidade com seus abadás e cordas

Pra que corda 

Se a pipoca tá com a corda toda  

Pra que corda?  

Pra que corda? 

Abaixe a corda que a pipoca vai passar 

(Hino do Trio Armadinho, Dodô e Osmar para o Carnaval 2017)  

No ano de 2009, formulei algumas reflexões sobre o Carnaval de Salvador, a partir de rigorosa observação, com o olhar espichado sobre a Avenida Sete de Setembro, tradicional espaço da folia. Não foi uma pesquisa acadêmica, nem mesmo de opinião ou de encomenda, mas o fluxo da indignação mobilizada pelo cenário de confronto com a falsa narrativa midiática e institucional ávidas por traduzirem uma “democracia carnavalesca” incompatível com a realidade da luta de classes nas ruas e avenidas onde a festa acontece e a cidade se divide em circuitos (Barra/Ondina, Campo Grande, Batatinha) e castas (Com Corda/Sem Corda ou Pipoca).

Cordeiros sofriam (e ainda sofrem) não só no momento de receberem pelo trabalho para conter a invasão de intrusos (pipocas) e protegerem as “ilhotas” (blocos) onde evoluem os abadás, mas também pela discriminação e falta de equipamentos para o trabalho, conforme exigências do órgão da categoria, Sindicordas. Com essa leitura, “historiei” o artigo “Carnaval de Salvador: ‘apartheid’ e seletividade em uma ilha de brancos cercada por uma corda de negros”, que repercutiu em meio a concordâncias e “crítica metodológica”, de logo refutada, por não ser pretensão do texto construir uma tese acadêmica, e sim, refletir sobre o conflito entre o jogo democrático e a desigualdade social que se escancarava na maior festa de rua do país.

Decorridos catorze anos, agora, 2023, a “mesmíssima” cena, na “mesmíssima” avenida Sete de Setembro com a “mesmíssima” violência policial militar espancando foliões. Ao que parece, as vítimas são os/as “mesmíssimos/as” clientes preferenciais do sistema de segurança e justiça: vulneráveis, desviantes, matáveis e criminalizáveis pelo capitalismo, com os aplausos da “mesmíssima” elite que se delicia no circuito Barra/Ondina, com ou sem corda.  E esse artigo se (re)anima diante de um emblemático, excludente e insistente “separatismo da alegria”. Entre aspas, portanto, seguem trechos do texto de 2009:

Ignoro o critério dos órgãos responsáveis pelo Carnaval de Salvador, para estabelecer o percurso dos Blocos, Trios Alternativos, Independentes ou qualquer outro nome dessas parafernálias musicais. Até que me esforcei por saber, junto a um órgão de turismo, mas não tive êxito na resposta. Certo é que alguns/algumas dos “deuses/deusas” que puxam essas “corporações” não passam pelos tradicionais percursos da Avenida Sete, Piedade, São Pedro, Praça Castro Alves, chamado Circuito Campo Grande (ou Osmar), que prefiro designar por “Circuito Senzala”, tal é a manifesta concentração de nichos de pobreza que ali se aglutinam. Muitos desses reis/rainhas do Axé, Pagode, desfilam apenas pelo trajeto Barra/Ondina, (ou Circuito Dodô), que denomino “Circuito Casa Grande”, em razão do grupo de elite que prefere curtir o Carnaval com “segurança”, longe da “mistura” do centro da cidade. 

Por escolha política, estou no “Circuito Senzala” e, do alto do quinto andar de um prédio em frente ao velho Jardim da Piedade, cercado por grades de ferro escondidas atrás de muralhas de madeira, posso enxergar com maior objetividade o Carnaval declamado internacionalmente por ser a mais intensa expressão de alegria (e com razão) e de respeito à diversidade étnica e cultural que marca nosso povo (o que não é verdadeiro). (…) 

No podium simbolizado pelos Trios Elétricos, o encanto e a fama de rostos globais, convidados especialmente para gozo e delírio da maioria pobre, apinhada e comprimida ao longo do espaço público legal (mas ilegitimamente) apropriado pelas elites que desfilam nas grandes Empresas/Blocos que dominam o Mercado Carnavalesco de Salvador, produzindo um espetáculo destinado principalmente aos ricos e aos turistas que ocupam a cidade durante a folia momesca. (…) 

De repente, acontece a explosão. A Praça Piedade enlouquece, mobilizada por uma das “deusas” douradas que comandam o espetáculo do Carnaval da Bahia. E outros “deuses/deusas” se sucedem, enquanto também se aglomeram os “excluídos da corda”, pulando entre as barreiras formadas pelos edifícios, pelo jardim e pelas “correntes vivas” que circulam os blocos. Não só, o muro se fortifica por fileiras de policiais militares, que parecem ter olhos e ouvidos apenas para os negros fora da corda, os quais, em todos os momentos que pude presenciar, eram os únicos abordados. 

Carnaval de Salvador é isso aí: uma ilha de brancos cercada por uma corda de negros e negras. Foi a única resposta que consegui formular diante da indagação que me fez uma paulista sobre essa festa já tão deformada na sua feição democrática. (…) 

Por todo o período de Carnaval, negro é o tom da corda, dos ambulantes que circulam aos milhares. É a cor do povo “Fora dos Blocos”, olhando das calçadas, pulsando ao som de altíssimos equipamentos que amplificam à exaustão as vozes dos “mitos” da passarela e aplaudindo os desfilantes dos blocos, talvez, na sua expressiva maioria, descendências dos colonizadores de terras no passado, e agora, dos espaços antes livres para brincar e da alegria que vibra a cada passagem dos “latifundiários da folia”. (…) 

Nesse contexto, chama atenção a quem se dispõe a fazer uma leitura crítica do Carnaval de Salvador, o fato de que em nenhum outro momento a luta de classes se revela com tamanho vigor em nossa cidade. As ruas, praças e avenidas que deveriam pertencer ao povo, seu titular legítimo, se acanham para ceder lugar a alguns privilegiados, a exemplo de atores, atrizes, autoridades e outros figurantes da nobreza daqui e de fora do país que se confinam em luxuosos camarotes garantidos pelos “deuses/deusas” do Carnaval, ou explorados por capitalistas do Império de Momo, que vendem o espaço público a quem possa dispor do valor cobrado. 

O mais censurável é a restrição desses espaços, acessíveis apenas à nata esguia, branca e economicamente estável que desfila rigorosamente vestida de “abadá”, figurino de criação baiana comercializada a preços que humilham a quem ganha um salário e envergonham a tantos quantos militam na trincheira da busca pela destituição das desigualdades e pela construção de uma sociedade onde todos e todas, indistintamente, possam se “empoderar” da exultação de “ser pessoa”, e, nesse sentido, de “ser pessoa dentro de todo o espaço da alegria” do Carnaval de Salvador.

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Essa manifestação de 2009 parece que pode ser perfeitamente enquadrada na moldura do Carnaval de 2023. A política de segurança pública atravessa os tempos insensível a escopos de governos que não pactuam com práticas de violação de direitos. Assim, não surpreende a notícia de que “militares foram flagrados enquanto agrediam foliões no circuito Osmar (Campo Grande) durante o carnaval de Salvador, na noite de segunda-feira (20). […]. Um vídeo gravado por testemunha mostra o momento em que um grupo de pessoas é agredido quando passa pela região da Avenida Sete de Setembro”.

Jerônimo Rodrigues é um governador democrático, alinhado a lutas sociais. Apresentou à sociedade o Planejamento Operação Carnaval 2023, sinalizando o “conjunto de ações para o primeiro Carnaval depois da pandemia de covid-19 na capital e interior do estado” quando “vai reunir 30 mil profissionais […] para garantir a segurança”. A expectativa, segundo o governador, que também relata contar com atrações culturais, serviços prestados pelas áreas da Saúde, Segurança Pública e de Justiça e Direitos Humanos, era de realizar “o maior Carnaval de todos os tempos”, unindo Governo do Estado, prefeitura da capital e o setor privado para fazerem “uma grande festa para baianos e turistas”.

O estado e o município deixam evidente o compromisso com a folia. Resta confirmar se o “setor privado” está disposto a se aliar a essa intenção quando se trata de botar qualquer bloco nas ruas. De acordo com o presidente e fundador do Ilê Ayê, Vovô do Ilê, faltam apoio e patrocínio do empresariado que investe no Carnaval de Salvador, quando se trata de bloco afro. Para o músico, “Antes de serem capitalista, os empresários são racistas. Eles preferem perder dinheiro do que juntar o dinheiro dele com o povo preto”.

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Paulo Miguez, do Projeto Memorias de Momo, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) afirma que “esse cuidado que os governantes estão tendo esse ano engrandece o Carnaval e vai na direção correta de criar as melhores condições para aqueles que são a maioria do público”. Para o professor, “a grande trama do Carnaval se estabelece entre a música, a folia e, mais que qualquer outra, a rua. Qualquer tentativa de criar uma oposição e dicotomia, é perigosa e autoritária”.

Diz o poeta que “a praça é do povo como o céu é do condor” (Castro Alves). Até quando a corda vai se apoderar da praça?

*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal (PUC-SP), Professora aposentada da UEFS, Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, ex-membro do Conselho Penitenciário do Estado da Bahia e da Comissão de Direitos Humanos da OAB BA, membro da AATR, da RENAP e da ABJD, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos.

**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.

Edição: Nicolau Soares

 Fonte: Brasil de Fato

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