Escola de Comunicações e Artes propõe homenagem a Luiz Gama

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Congregação da unidade sugere dar título de Doutor “Honoris Causa” ao intelectual negro do século 19

  • Por Luiz Prado – Segunda, 28 de Junho de 2021

A Congregação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP propôs que a Universidade conceda o título de Doutor Honoris Causa a Luiz Gama, abolicionista, escritor, advogado, jornalista e político negro do século 19, atuante na libertação de cerca de 500 escravos. Cabe ao Conselho Universitário (CO) decidir se concede o título.

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador em 1830, filho de mãe africana livre e pai português. Aos 10 anos, seu pai o vendeu para pagar dívidas de jogo e com isso Gama foi para Lorena, cidade no interior de São Paulo. Aí aprendeu a ler e escrever e conseguiu judicialmente sua liberdade aos 18 anos.

O professor Dennis de Oliveira, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP – Foto: IEA

Intelectual polivalente, Gama frequentou como ouvinte as aulas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (atualmente parte da USP), após ter sido proibido de realizar regularmente seus estudos na instituição. Mesmo sem o diploma, exerceu a advocacia na condição de profissional provisionado, uma categoria que existiu até 1960, quando apenas bacharéis em Direito passaram a poder atuar. Em sua carreira como advogado, pautada sobretudo na área de processos de libertação de escravos, foi fundamental na libertação de mais de 500 negras e negros.

Foi ainda jornalista ativo, defensor da liberdade de imprensa e porta-voz da condição da população negra, com contribuições em uma série de jornais como A Gazeta da CorteA Província de São PauloCabrião e Correio Paulistano. Ao lado do desenhista italiano Angelo Agostini, fundou em 1964 o semanário Diabo Coxo, primeiro jornal ilustrado de São Paulo.

O intelectual foi também poeta, tendo lançado em 1859 a coletânea satírica Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, repleta de crítica social e política e temáticas abolicionistas e raciais. Morreu em 1882, seis anos antes da defendida e sonhada abolição. Seu funeral contou com o cortejo de uma multidão que o acompanhou por cerca de seis quilômetros.

“Eu o considero o primeiro intelectual público brasileiro”, comenta o professor Dennis de Oliveira, do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA e integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro (Neimb) da USP. Oliveira é um dos responsáveis por ter levado a proposta do título de Doutor Honoris Causa para a Congregação da ECA, iniciativa que também foi apoiada pela Comissão de Direitos Humanos da unidade.

“Por que eu o chamo de intelectual público?” prossegue o professor. “Porque ele percebeu que meramente a ação jurídica não seria suficiente. Ele articulou a ação política com uma ação quase militante. No jornalismo, na poesia e nas letras, Luiz Gama militava em prol do abolicionismo. Por isso foi um intelectual público. Ele fez uma análise sofisticada do que era a sociedade daquela época e expressou isso em sua produção literária, jornalística e jurídica com um objetivo: acabar com a escravidão. Era um intelectual orgânico.”

Depois de décadas de apagamento de sua história e importância, o reconhecimento de Luiz Gama começa a ganhar corpo. Em 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) concedeu a Gama o título oficial de advogado. Em 2018, foi declarado patrono da abolição da escravidão no País e seu nome foi inserido no Livro de Heróis da Pátria. Mais recentemente, em 2020, Gama foi agraciado com o Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Para o dia 29 de julho deste ano, está previsto o lançamento de Doutor Gama, filme baseado em sua vida, dirigido por Jeferson De.

Busto de Luiz Gama no Largo do Arouche, no centro de São Paulo – Foto: Mube Virtual

“Esse título é importante porque, ao reconhecê-lo como intelectual público brasileiro, você possibilita que as várias áreas do conhecimento estudem sua obra”, explica Oliveira sobre a relevância do título de Doutor Honoris Causa. “É impressionante: uma pessoa escravizada dos 10 aos 17 anos, que aprendeu a ler aos 17, foi um autodidata e, ainda assim, teve uma produção maravilhosa, sofisticadíssima e de referência nas artes, nas letras, no jornalismo e no direito.”

“Diante disso”, continua o docente, “uma figura com esse trânsito em várias áreas e essa reflexão sofisticada sobre a sociedade escravagista da época tem que ser reconhecida como intelectual, uma pessoa que consegue pensar a sociedade. E, no caso dele, um intelectual público, porque não é só um conhecimento erudito, mas também uma iniciativa política de transformação da sociedade”.

O título de Doutor Honoris Causa, conforme dita o artigo 92 do Estatuto da USP, é concedido para personalidades nacionais ou estrangeiras que tenham contribuído para o progresso das ciências, das letras e das artes de modo notável. Também contempla aqueles que tenham beneficiado de forma excepcional a humanidade e o País ou tenham prestado serviços relevantes para a Universidade. A Congregação de qualquer unidade da USP pode propor a concessão do título, assim como todo membro do Conselho Universitário. A aprovação passa por esse mesmo Conselho e precisa de dois terços dos votos de seus integrantes.

Oliveira também vê na concessão do título uma reparação histórica ao próprio Luiz Gama. “Ele tentou estudar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e não conseguiu por conta do racismo. Teoricamente, ele tentou estudar na USP e não conseguiu (já que a faculdade seria integrada à Universidade de São Paulo em sua fundação, em 1934). Então, é uma reparação da Universidade em relação à interdição de seus estudos.”

Enquanto aguardam a reunião do Conselho Universitário, Oliveira e os demais envolvidos na campanha vêm realizando uma série de atividades para fortalecer a candidatura de Luiz Gama. Há uma semana, a ECA transmitiu através do seu canal oficial no YouTube uma live abordando a atuação do intelectual para além do abolicionismo. O próprio Oliveira vem mobilizando pessoas de fora da Universidade, em iniciativas como a promoção de um abaixo-assinado.

“Esperamos que o Conselho Universitário tenha sensibilidade e aprove a proposta. É uma reparação histórica e a Universidade demonstrará na prática que há uma preocupação institucional com a diversidade e a luta contra o racismo”, aponta o professor. “É uma concessão simbólica, evidentemente, já que Luiz Gama está morto, mas é importante como marco histórico. Se a USP conceder esse título, estará se reconectando a uma reconstrução histórica importante que é dar visibilidade a vários heróis e heroínas negros que, em função do racismo, ficaram invisibilizados. Luiz Gama é uma figura simbólica disso”, finaliza Oliveira. Informações do site Jornal USP.

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