LGPD e reconhecimento facial nos estádios: importância e vulnerabilidades

justiça

Por Rodrigo Vianna – Sábado, 4 de novembro de 2023

Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) foi criada com o objetivo principal de proteger os direitos fundamentais de liberdade, de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Foi inspirada na Lei Europeia de Proteção de Dados (GDPR), e deve ser usada a fim de garantir mais transparência no uso e armazenamento de dados pessoais. No entanto, ainda há brechas que permitem exceções, motivo pelo qual devem ser analisadas questões como segurança, transparência, vulnerabilidades.

Essa lei também definiu o que são dados pessoais e os dados que estão sujeitos a uma maior proteção, como, por exemplo, os dados pessoais sensíveis. Entre estes dados, podemos destacar os dados biométricos, que são todos aqueles dados que permitem a identificação individual, única e exclusiva de um indivíduo (pessoa natural).

A LGPD tem como uma das vigas mestras o respeito à privacidade. No entanto, também deve haver o interesse em compatibilizar a privacidade com o desenvolvimento econômico, tecnológico e a inovação.

O sistema de reconhecimento facial, por exemplo, é baseado no uso de padrões biométricos que, conforme o artigo 5º, II, da LGPD, é um dado pessoal sensível, onde o tratamento possui requisitos específicos e mais rígidos do que aqueles previstos para o tratamento de dados pessoais em geral. Com efeito, é importante compreender o contexto no qual estes dados são coletados e como serão utilizados pelas organizações.

Vale ressaltar que as tecnologias de identificação ganharam espaço no âmbito da segurança pública e privada. O reconhecimento facial vem sendo largamente utilizado (mas, a que custo?) em espaços com grande circulação de pessoas, como vias públicas, estádios, empresas, shoppings centers, bancos e condomínios.

Não obstante o reconhecimento facial seja uma importante ferramenta de monitoramento e segurança em espaços públicos e privados, ainda não há clareza quanto à legitimidade na sua utilização na perspectiva da privacidade e da proteção de dados, dada a preocupação com a preservação dos direitos e liberdades individuais dos titulares dos dados.

Em muitas situações, não há transparência sobre a forma e a finalidade sobre como e por quê estes dados serão utilizados. Usualmente, também não há clareza quanto aos resultados práticos destas ações, tais como garantia da segurança e agilidade em processos de análise. E o consentimento do titular dos dados? Será que as organizações informam, com detalhes, para que, de que forma e quando estes dados tecnológicos serão utilizados?

Não se pode negar que a leitura biométrica tem diversas vantagens, tais como auxiliar na segurança de espaços, agilidade em identificações de pessoas. Câmeras de monitoramento, por exemplo, conectadas a sistemas de reconhecimento facial para melhorar a segurança pública, ou mesmo de empresas privadas, são muito importantes. No entanto, há questionamentos sobre as vulnerabilidades deste tipo de sistema. Aliás, com o advento da LGPD, tendo em vista o seu potencial de restrição à liberdade individual, de violação da privacidade e de uso para fins discriminatórios, esta análise ganhou ainda mais força.

A rigor, o uso da tecnologia encontra fundamento no inciso II, “g”, artigo 11, da LGPD, que autoriza o tratamento de dados pessoais sensíveis para a garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular, nos processos de identificação e autenticação de cadastro em sistemas eletrônicos, exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais.

A coleta de dados biométricos deve ter seu alicerce na segurança da informação. O acesso aos dados não pode ser irrestrito e talvez não possa ser justificado pela manutenção da ordem ou pela celeridade de processos.

A Lei Geral do Esporte e o Projeto de Lei que estabelece diretrizes para o uso de sistemas de reconhecimento facial em estádios de futebol
Em 15 de junho de 2023, foi sancionada a Lei Geral do Esporte (LGE) — Lei nº 14.597/2023 —, que estabelece a obrigatoriedade de utilização de biometria por reconhecimento facial nos estádios com capacidade de até 20 mil pessoas, até o período de dois anos.

Além disso, há uma proposta em tramitação envolvendo a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e o Ministério Público para tornar obrigatória a implementação do reconhecimento facial como medida de segurança em todos os estádios do país.

Em agosto deste ano, foi aprovada pela Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, o PL 2.745/23, que estabelece diretrizes para o uso de sistemas de reconhecimento facial em estádios de futebol. Será facultativa a implementação do sistema pelos estádios, cabendo exclusivamente, às entidades públicas e privadas responsáveis pelo evento e consequentemente pelo uso da tecnologia, o tratamento e o compartilhamento dos dados biométricos garantindo o respeito ao que dispõe a LGPD.

Além disso, o texto informa que o uso de reconhecimento facial não pode ocorrer em locais onde a privacidade do torcedor ou jogador deva ser preservada, como banheiros, vestiários e refeitórios.

Ao contrário do artigo 148 da Lei Geral do Esporte, que impõe a implementação de monitoramento biométrico em arenas com capacidade para mais de 20 mil pessoas, o PL prevê que o sistema de reconhecimento facial será facultativo, de acordo com a necessidade de cada local para garantir a proteção dos direitos fundamentais, assegurar a privacidade e a segurança dos torcedores e jogadores.

De qualquer forma, o certo é que ao utilizar um sistema de reconhecimento facial, os clubes devem se comprometer a investir em sistemas de gerenciamento de dados apropriados, que possam responder às solicitações de acesso do titular dos dados. Os clubes devem comunicar essas questões de forma clara e acessível aos torcedores.

E aqui, um questionamento. Será que os clubes de futebol poderão ser obrigados a compartilhar, com o Estado, dados pessoais biométricos coletados, com fundamento em questões de segurança?

O sistema de reconhecimento facial nos estádios
A utilização do reconhecimento facial em um contexto de vigilância é apresentada como uma tentativa de melhorar a segurança. Porém, muitas vezes esta questão vem acompanhada de um custo potencial em termos de privacidade.

O mero uso dessas ferramentas já modifica o ser humano e a vida em sociedade. Dessa forma, a utilização inadequada tem potencial que pode ser devastador. Neste contexto, é ainda mais importante o papel do Estado como garantidor de uma evolução sustentável.

O uso dessa tecnologia pode ser muito útil e positivo, mas como qualquer tecnologia necessita de aprimoramento, tanto em sua eficácia, quanto em seu uso, e que siga normas de privacidade e proteção de dados, além da proteção de direitos fundamentais.

A análise também passa pela consideração da possibilidade de substituição ou combinação do sistema de reconhecimento facial com outras tecnologias que cumpram propósito equivalente, à medida que os princípios da adequação e da necessidade contidos no artigo 6º, II e III, da LGPD, exigem que o tratamento de dados pessoais seja realizado sempre pelo meio menos invasivo.

É necessário também que seja muito bem avaliada e esclarecida a obtenção do consentimento do titular, na coleta de dados biométricos, no contexto dos clubes de futebol.

A tecnologia em comento tende a ser positiva, e objetiva modernizar o processo de acesso em estádios de futebol. Aliás, este processo pode auxiliar também no combate ao cambismo e a garantia de maior segurança.

Importante destacar alguns passos que devem ser observados, pelos clubes de futebol, na implementação de um sistema de reconhecimento facial:

– Planejar todo o funcionamento do sistema;

– Obter o consentimento explícito das pessoas, cujos dados serão coletados;

– Garantir a transparência sobre como os dados serão utilizados;

– Pensar em alternativas para respeitar a vontade dos usuários que não se sintam seguros em compartilhar seus dados, sem que isso prejudique seu acesso ou a segurança dos demais usuários;

– Possuir um canal de comunicação adequado, que permita o exercício dos direitos dos titulares.

Além disso, necessário dizer que é importante cautela na implementação dessa tecnologia, levando em consideração os princípios de privacidade e proteção de dados desde a sua concepção (privacy by design). Muitas organizações desconhecem a sua própria estrutura organizacional, não sabendo sequer estabelecer a segurança das informações que possuem. O desconhecimento de tal situação pode resultar no vazamento de dados pessoais, além da responsabilização por danos morais.

A implementação da biometria por reconhecimento facial é um passo importante para enfrentar a questão da violência nos estádios. No entanto, é importante dizer que este tipo de tecnologia é utilizada apenas para garantir a segurança dentro desses locais não para fins de monitoramento genérico, sendo que um dos principais requisitos a serem observados é o da privacidade dos cidadãos.

Se por um lado a implementação do sistema possui vantagens, como agilidade e segurança, por exemplo, pode levar os torcedores a alguns riscos. Podemos citar identificações equivocadas das pessoas, cor da pele, associação do rosto a dados de compras.

Como visto, este tipo de tecnologia não é isenta de falhas e muitas vezes comete equívocos quando se trata de transparência, auditabilidade e responsabilidade dos clubes ou mesmo agentes públicos, perante as pessoas que têm seus dados tratados. O modo de funcionamento dessas ferramentas costuma ser uma “caixa-preta”.

Vantagens do reconhecimento facial em estádios de futebol
O reconhecimento facial oferece uma série de vantagens nos estádios de futebol, incluindo:

– Tempo de entrada reduzido;

– Combate ao cambismo: com o uso de dados biométricos, será impossível comprar a entrada e vendê-la ou entregá-la para terceiros. O torcedor não poderá mais entrar no estádio com ingressos comprados de forma abusiva;

– Maior segurança: o reconhecimento facial pode ajudar a identificar torcedores com antecedentes criminais, torcedores proibidos de entrar no estádio e torcedores que estão sendo procurados pela polícia.

– Controle de acesso: o reconhecimento facial pode ser usado para controlar o fluxo de pessoas nas entradas dos estádios, o que pode ajudar a evitar tumultos e confusões.

Desvantagens do sistema
No entanto, o sistema também apresenta vulnerabilidades e desvantagens, principalmente para os titulares de dados. Pode-se citar:

– Oportunidades comerciais (riscos à privacidade): a implementação do reconhecimento facial abre algumas possibilidades comerciais para os clubes de futebol. O uso do equipamento pode ser utilizado para expor marcas de patrocinadores, aumentando a precisão do customer relationship management (CRM) e oferecer benefícios e produtos condizentes com o perfil do torcedor.

– Riscos à privacidade: existem preocupações sobre uso indevido de dados biométricos no futuro e a perda de privacidade dos torcedores, inclusive com a comercialização do banco de dados com outras empresas.

– Apesar da celeridade para o acesso aos estádios, continuará ocorrendo “revista” para a entrada nos estádios.

Aqui, oportuno dizer que Amanda Jacks, da Football Supporters Association (FSA), que é um órgão nacional, democrático e representativo dos adeptos do futebol na Inglaterra e no País de Gales, observou que “os torcedores ainda terão que ser revistados antes de entrar em qualquer estádio, e a tecnologia é aparentemente apenas um pouco mais rápida que os leitores de cartão eletrônico, (então) é difícil ver como isso é genuinamente uma melhoria no sistema atual”.

– Potencial de discriminação: este tema é abrangido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (artigo 2º) e pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 14º). Estudos demonstraram que a tecnologia de reconhecimento facial apresenta um preconceito inerente ao identificar de forma desproporcionada as mulheres e as minorias étnicas, o que significa que as pessoas destes grupos têm maior probabilidade de serem detidas e interrogadas pela polícia e de terem as suas imagens retidas como resultado de uma falsa correspondência.

Enfim, o sistema em comento pode ser muito positivo e objetiva modernizar e aprimorar o processo de acesso em estádios de futebol, além de questões relativas à monitoramento e segurança do público. No entanto, será que a maioria dos clubes de futebol está preparada para utilizar, adequadamente, este sistema? Ainda há necessidade de aprimoramento e conhecimento, por muitos clubes de futebol, sobre a LGPD e o sistema de reconhecimento facial, devendo haver responsabilidade, inclusive, por garantir que as informações faciais coletadas sejam tratadas de forma transparente, ética e segura.

Fonte: Conjur

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