Livro de professora da USP revela era contemporânea de crueldade

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Em ficções e ensaios, “Kalash meu amor: A arma infame e outras delicadezas”, de Marília Pacheco Fiorillo, discute aumento da violência e reação apática da população

Nenhuma página do livro Kalash meu amor: A arma infame e outras delicadezas passa impune da crítica social afiada de Marilia Pacheco Fiorillo, professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e colunista da Rádio USP. A obra, recém-lançada pela editora Gryphus, lamenta a apatia da população frente à crueldade contemporânea e recusa essa naturalização e falta de espanto. 

A Kalash, que está no título, é a arma Kalashnikov, popularmente conhecida como AK-47. Somos apresentados a ela na introdução do livro, que se dedica a fazer um inventário de sua criação e tecnologia. Fiorillo a define como parte da cultura pop, uma arma de destruição em massa que democratizou a capacidade de matar. Um “artefato sob medida para o vale-tudo da barbárie” que iguala a morte do combatente e a do alvo inimigo por serem ambos dispensáveis, escreve a professora. 

Marília Fiorillo – Foto: Lattes

De romântico símbolo de libertação em guerras de independência, o fuzil se tornou um emblema de crimes contra a humanidade. Segundo a autora, um quinto das armas de fogo do mundo pertencem à família Kalashnikov. Por sua versatilidade de uso, fácil manutenção e longevidade, a arma foi popularizada. Até características humanas são empregadas para descrever o fuzil, que ganha as qualidades da “inteligência adaptativa” e da “incomparável resiliência”. 

A arma é o fio condutor da primeira seção do livro, denominada Mundos Paralelos Não Colidem. Nesta parte, Fiorillo cria três grupos do que chama de ficções falsas: histórias inventadas, mas que são ancoradas em fatos concretos. Cada grupo possui dois contos curtos que se aproximam, mas nunca se encontram, como retas paralelas. 

Serra Leoa, Somália, França e Brasil foram os países escolhidos para ambientar as ficções. A arma AK-47 não é o único fio que une as narrativas, elas são aproximadas por hipocrisias, contrastes e violências. A autora satiriza a classe média e cria personagens exagerados para dar conta de absurdos, como concursos que premiam crianças com fuzis.

Além dos grupos de ficções, a primeira seção inclui também a história Pobre Diabo. Neste conto, um demônio que acorda de um sono profundo se encanta com a quantidade de violências e tragédias que acontecem na Terra. Antes de encerrar a primeira parte, Fiorillo lança luz sobre discussões recentes, como a expansão do teto de gastos no Brasil e a Guerra da Ucrânia.

Capa do livro “Kalash meu amor: A arma infame e outras delicadezas” – Foto: Reprodução/Gryphus

A leitura das cruéis histórias fictícias prepara o terreno para a segunda seção do livro, onde as críticas se tornam mais explícitas. Em Da Ralécracia ao Ponto Morto da Teoria, Fiorillo se debruça no problema da apatia diante da crueldade ao longo de seis ensaios. Os pensamentos do filósofo Richard Rorty guiam o primeiro deles, no qual a professora denuncia que vivemos em uma era de sadismo e defende a empatia como forma de rechaçar o cinismo.

Conforme os ensaios avançam, acontecimentos recentes são utilizados como exemplos para ancorar a argumentação. A ascensão do bolsonarismo no Brasil e de outros governos de extrema-direita ao redor do globo é o motivo de Fiorillo identificar que vivemos em uma época de normalização e naturalização da boçalidade. 

Nesta época, a democracia e outras formas de governo aristotélicas não dão conta da organização política da sociedade. A “Ralécracia, o governo da ralé para a ralé” é a solução. Fundado na corrupção, esse sistema corresponde ao momento em que personalidades vulgares, despudoradas e violentas florescem no Planalto e na planície, como explica a autora.

A pandemia de covid-19 também é tema de ensaios. Fiorillo se apoia na crise sanitária para explicar como a sucessão de eventos acelerados e desorganizados que compõem a vida contemporânea justificam a dificuldade de entender a realidade. Os maiores riscos nesse cenário de perda sucessiva e morte são o desalento e a apatia. 

Os diagnósticos encontrados na obra não são otimistas. Hoje, “grana, status, exibicionismo patológico” são as moedas da sociedade. E sobre o futuro, Marília Fiorillo prenuncia que os conflitos mundiais não serão encerrados com a explosão de uma bomba atômica, mas sim continuarão infinitamente em guerras locais, étnicas, religiosas, sectárias e tribais. 

O livro Kalash meu amor: A arma infame e outras delicadezas, com 128 páginas, pode ser adquirido no site da editora Gryphus.

  • Sob orientação de Marcello Rollemberg

Fonte: Jornal da USP

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