Por Rafa Santos – Domingo, 16 de outubro de 2022
Enquanto atuou nos processos da autoproclamada “lava jato”, na 13ª Vara Federal de Curitiba, o ex-juiz Sergio Moro decretou prisões preventivas sem fundamentos jurídicos, desrespeitou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e fez “pressão processual” para que acordos de delação premiada fossem fechados com o Ministério Público Federal. No entanto, apesar da fama de “linha dura” que cultivou, ele mandou soltar investigados com mais frequência do que os ministros do STF.
Essa é uma das conclusões da análise de 117 decisões do ex-magistrado feita pelo advogado e pesquisador Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves. O resultado do trabalho do causídico é o livro Prisões Preventivas da Lava Jato — Uma análise empírica e crítica de seus fundamentos (Editora Amanuense).
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Chaves explicou que o ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro estabeleceu sete modelos para determinar prisões preventivas, todos eles explorando uma lacuna da antiga redação do Código de Processo Penal.
“Na época dessas decisões, o artigo 312 era praticamente o mesmo desde que foi criado, lá na década de 1940. Na palavra do professor Alexandre Morais da Rosa, há uma anemia semântica na expressão garantia da ordem pública, por exemplo, que você não consegue definir, não tem uma definição legal do que é.”
A pesquisa de Chaves revelou que de 65 decisões de prisão preventiva de Moro, que atingiram 99 pessoas, 62 tinham como fundamento o critério subjetivo da garantia da ordem pública. E em 14 delas, que colocaram atrás das grades sem condenação 26 pessoas, esse foi o fundamento exclusivo para a prisão.
Para além de todas as ilegalidades já explicitadas com a divulgação das conversas da “vaza jato”, a pesquisa de Chaves apresenta fatos concretos, registrados em processos, que escancaram a falta de lisura da atuação de Sergio Moro na “lava jato”.
Em uma decisão, por exemplo, o ex-juiz chegou a decretar a prisão preventiva de investigados que iriam disputar uma eleição com a justificativa de que se tratava de ato de “garantia da ordem pública”.
“Como dinheiro é poder e o domínio político é competitivo, políticos desonestos, por terem condições de contar com recursos criminosos, possuem uma vantagem comparativa em relação aos probos. Se não houver reação institucional, há risco concreto do progressivo predomínio dos criminosos nas instituições públicas, com o comprometimento do próprio sistema democrático. O correto seria que as próprias instituições políticas ou as próprias estruturas partidárias resolvessem essas questões. Não sendo este o caso, necessária infelizmente a intervenção do Poder Judiciário para poupar a sociedade do risco oferecido pela perpetuação na vida pública do agente político criminoso, máxime quando há possibilidade de que este volte, em futura eleição, a assumir mandato parlamentar. Nada pior para a democracia do que um político desonesto”, escreveu o ex-lavajatista ao decretar uma prisão preventiva. Moro também chegou a justificar a detenção de um investigado com o fato de ele ter sido suplente de deputado federal.
Além das interpretações elásticas sobre o que seria a tal “garantia da ordem pública”, o livro também mostra como a necessidade de angariar apoio popular para a “lava jato” fez Moro responder críticas em decisões e alterar fundamentações.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Por que o senhor decidiu estudar as sentenças de Sergio Moro na “lava jato”? Quanto tempo durou a pesquisa?
Álvaro Chaves — A ideia surgiu um pouco da magnitude que tomou a “lava jato” e das discussões que apareceram a partir das decisões da operação. Comecei a estudar com mais profundidade isso em 2016, 2017, e, enfim, a “lava jato” estava no ápice e, a partir da minha atuação, comecei a ter esse insight de estudar as prisões preventivas da operação.
Consegui unir uma matéria que era do meu interesse, que é processo penal, com a análise empírica que começou a ter mais espaço nas universidades e tem sido estimulada. Analisei 117 decisões, considerando as decisões de preventiva que foram decretadas pelo Moro, as revogações que o próprio Moro fez e os acórdãos e as decisões monocráticas de mérito dos tribunais de revisão.
ConJur — E como o senhor definiu a metodologia desse estudo?
Álvaro Chaves — Eu fiz um apanhado cronológico e parti para a leitura integral de cada uma das fases da operação. Foquei nos fundamentos das preventivas, naquilo que no contexto jurídico a gente trata como periculum libertatis, que são aqueles previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública, conveniência da instrução etc. Tem uma outra parte nas decisões que é uma fundamentação sobre a existência de indícios de autoria etc., o que não era propriamente do meu interesse. Então eu foquei meu estudo nessa parte específica dos fundamentos do artigo 312, do periculum libertatis.
ConJur — E o senhor constatou que esses fundamentos foram completamente flexibilizados?
Álvaro Chaves — O que se consegue vislumbrar é que temos um problema de redação do nosso Código de Processo Penal, que não é um problema atual, é um problema de longa data. A redação do artigo 312 praticamente não tinha mudado até a data em questão, quando eu analisei as decisões, porque com o pacote anticrime teve uma pequena modificação.
Na época dessas decisões, o artigo 312 era praticamente o mesmo desde que foi criado, lá na década de 1940. Na palavra do professor Alexandre Morais da Rosa, há uma anemia semântica na expressão garantia da ordem pública, por exemplo, que você não consegue definir, não tem uma definição legal do que é. Então foi interessante entender como isso era utilizado, como o juiz argumenta para usar como fundamento a garantia da ordem pública, por exemplo. E você vê que há argumentações muito elásticas, que fogem totalmente da razoabilidade que a jurisprudência prega para entender como garantia da ordem pública.
ConJur — Havia um modelo de decisão?
Álvaro Chaves — Há vários modelos, na verdade, porque ao decretar as prisões, para caracterizar o que é garantia da ordem pública, por exemplo, o Moro partiu de um modelo na primeira fase da operação e ele foi adaptando esse modelo ao longo do tempo, mas mantendo a espinha dorsal. Então eu passo no livro a analisar, a dividir as decisões dele a partir de modelos. São sete modelos. Há algumas decisões que fogem desses modelos, mas eu consegui identificar sete padrões em 90% das decisões. Ele criava um modelo, utilizava durante um tempo, os tribunais revogavam, e ele dava uma adaptada nesse modelo. Mas é possível estabelecer uma espinha dorsal de fundamentação em cada um desses sete modelos que eu traço no livro.
ConJur — É possível estabelecer uma linha do tempo entre as críticas públicas, ainda que poucas, pelo menos em um primeiro momento, à “lava jato” e as mudanças de modelos das decisões do ex-juiz?
Álvaro Chaves — O que eu percebi tanto em decisões do Moro quanto em um artigo escrito por ele, publicado em 2004, dez anos antes da “lava jato”, é que ele tinha um diálogo com a opinião pública e que as decisões dele passavam a conter argumentos que claramente não eram jurídicos, argumentos que ele tentava enquadrar ali como garantia da ordem pública, justamente em razão dessa anemia semântica do conceito.
Ele tentava enxertar nas decisões vários argumentos que visavam a ganhar espaço na mídia e ter apoio popular. Tanto que, em determinadas decisões, o que saía na manchete do jornal X ou Y era uma chamada que não tinha relação com argumentação jurídica, por exemplo. Em um determinado caso de que eu me recordo, ele utilizou um discurso da Dilma (Rousseff) e um do Aécio (Neves), isso logo após a eleição presidencial de 2014, para ajudar a justificar a prisão de determinada pessoa.
Agora, quanto a críticas públicas de, por exemplo, setores da academia ou da advocacia, ele passou, em determinados pontos das decisões, a rebater essas críticas. Por exemplo, em um determinado momento da operação ele passa a falar “estão falando que estou prendendo para delatar, mas isso não procede por causa disso, disso e disso”. Um exemplo de que me recordo agora é o de uma decisão de prisão preventiva em que ele rebate um comunicado de uma empreiteira criticando a “lava jato”. Havia essa relação entre as decisões e o que era veiculado na mídia.
ConJur — O senhor identificou fundamentações eleitorais nas decisões do então juiz?
Álvaro Chaves — Várias fundamentações me chamaram a atenção, mas essa relacionada a um aspecto eleitoral, na minha visão, foi de uma ilegalidade gritante, porque em três casos em que os investigados poderiam participar de um pleito eleitoral futuro, ou exercer cargo político em razão de serem suplentes de parlamentares, o então juiz decretou a preventiva justificando que pouparia a sociedade do risco de que essas pessoas pudessem concorrer ou assumir cargos eletivos. Então essa fundamentação foi, na minha visão, muito equivocada, porque eu acho difícil encontrar autores ou professores que justifiquem que isso se enquadre em garantia da ordem pública.
Vemos um papel até paternalista, de tutelar a sociedade, não sei com que legitimidade. De poupar a sociedade de um risco a partir de uma medida claramente ilegal, porque a inelegibilidade não é decorrente da prisão preventiva, a gente tem outros requisitos para a inelegibilidade. A prisão preventiva não causaria a inelegibilidade da pessoa, porém, ele utilizava a força simbólica da prisão preventiva, o impacto midiático que aquilo teria na vida daquela pessoa para diminuir a popularidade dela ou algo do gênero, porque no aspecto legal a prisão não impediria a pessoa de concorrer, mas a gente sabe que o aspecto simbólico da prisão preventiva é muito forte, acaba com a vida da pessoa, acaba com qualquer plano eleitoral dela. Então, nesse caso, há claramente um desvirtuamento da prisão preventiva e ele reconhece isso, há um expresso reconhecimento de que ele estava usurpando as funções das instituições políticas e dos partidos políticos, porque ele fala que isso deveria ser um papel deles, mas, como eles não estavam fazendo, ele decidiu fazer.
ConJur — O senhor pode falar um pouco sobre as características de cada modelo de decisão que identificou?
Álvaro Chaves — Cada mudança nesses modelos é um pouco teórica, e abrange vários aspectos. Por exemplo, ele abandona a garantia da ordem pública e passa a focar em gravidade em concreto e reiteração delitiva. Em determinado modelo, ele caracteriza a gravidade em concreto com o envolvimento de ex-parlamentares, e aí, em outros modelos, passa a caracterizar gravidade em concreto com o rombo que teria sido causado na Petrobras. Mas ele mantém a espinha dorsal da gravidade em concreto ou da reiteração delitiva.
ConJur — O ex-juiz não respeitou a jurisprudência consolidada?
Álvaro Chaves — Ele não respeitou a jurisprudência consolidada em muitas decisões, mas em algumas havia algum tipo de precedente que dava um conforto para ele prender em determinadas situações. Tanto que nem todas as prisões foram revogadas, ele tinha algum tipo de amparo, mas em grande parte ele desrespeitou precedente do STF, por exemplo, ao colocar essa questão da credibilidade das instituições, ao não considerar a contemporaneidade dos fatos.
Houve descumprimento de diversos pontos da jurisprudência do Supremo, e isso foi até interessante para que o STF estabelecesse ali o que seria a garantia da ordem pública, a necessidade de se respeitar a contemporaneidade, a delimitação clara de conveniência na instrução e risco à aplicação da lei penal, ou seja, aqueles riscos de destruição de provas ou de fuga que o Moro, em determinado momento, passou a correlacionar às condutas da pessoa jurídica, com a possibilidade de o investigado integrante dessa empresa passar a atuar de determinada forma, com o intuito de justificar o fundamento da prisão preventiva.
Então, o Supremo fixou uma limitação muito interessante dessa impossibilidade de utilizar, vamos colocar assim, uma postura genérica da direção da pessoa jurídica, de pressupor que o diretor e o funcionário terão a mesma postura somente pelo fato de serem da mesma organização. Foram vários pontos que o Supremo conseguiu delimitar e apontar ilegalidades na decretação de prisão preventiva. Sem sombra de dúvida, os dados concretos demonstram a importância da competência do Supremo Tribunal Federal para analisar os HCs.
ConJur — O senhor identificou relação entre o fato de fechar acordo de delação e a revogação dessas prisões preventivas?
Álvaro Chaves — Na decisão de decretação da prisão preventiva, embora o Sergio Moro, em determinado momento, tenha passado a se justificar falando que a prisão não era para a pessoa delatar, que ele estava cumprindo requisitos legais etc., nos casos principalmente da Odebrecht ele passa a inserir que a única forma de a pessoa/empresa se afastar de atividades criminosas seria celebrando um acordo. Ou seja, para bom entendedor, meia palavra basta. Ele está falando explicitamente que está prendendo para delatar? Não está, mas a interpretação é fácil no sentido oposto.
ConJur — Moro soltou mais do que o Supremo Tribunal Federal durante a “lava jato”?
Álvaro Chaves — Esse ponto, na minha visão, passou despercebido na época em que a “lava jato” estava com força. Quando o Supremo revogava uma prisão, havia aquele temor de que o Supremo estava querendo acabar com a “lava jato”. E, na verdade, pelos números que eu levantei, o Moro soltou mais do que o STF.
Isso não foi tão divulgado. Fui, então, estudar os motivos para as revogações das prisões usados pelo Moro e identifiquei que 50% dos casos, basicamente, eram de pessoas que, após a prisão, passavam a confessar, passavam a colaborar de certa forma, entregar documentos etc. Com essa postura, ele passou a soltar essas pessoas. Então isso, na minha visão também, é uma forma de fomentar a colaboração premiada.
Então são dois pontos: prende-se a pessoa e, então, diz-se que a única forma de afastá-la das atividades criminosas é celebrando um acordo. E, depois que a pessoa está presa e passa a colaborar, acaba solta. Teve uma pessoa que começou a negociar acordo e o Moro já revogou a prisão. Então são duas etapas, a prisão e a revogação. Em uma dessas decisões, ele coloca explicitamente que a celebração do acordo afasta o risco de reiteração delitiva e de perturbação da instrução que a preventiva buscou afastar.
O Supremo havia decidido antes que o fato de determinado investigado não ter celebrado colaboração premiada é absolutamente irrelevante no exame sobre o cabimento das medidas cautelares, ou seja, a celebração ou não do acordo não poderia influenciar nos requisitos da prisão preventiva. Ou seja, ele passa a descumprir uma determinação do próprio Supremo sobre os requisitos da prisão preventiva.
Ele passa a utilizar uma forma de soltar as pessoas descumprindo uma decisão do Supremo. E é óbvio que a pessoa que foi solta não vai recorrer disso. Não houve uma discussão judicial muito forte sobre isso, mas o STF se posicionou em pelo menos duas oportunidades de forma bastante clara de que o acordo não influenciaria nos requisitos da preventiva, mas mesmo assim ele soltou 14 pessoas dessa maneira.
ConJur — O senhor acredita que o instituto da delação premiada foi ferido de morte pela “lava jato” ou pode recuperar a credibilidade?
Álvaro Chaves — Vou dar uma resposta como criminalista, porque eu não fiz um estudo das delações que foram firmadas na “lava jato” para falar com dados concretos. O que vimos foi que muitos benefícios foram concedidos nesses acordos à margem da lei.
Acho que a delação, de um modo geral, é um instituto interessante, mas tem de ser visto com reservas e isso, a duras penas, tem sido feito pelos tribunais e, posteriormente, pela própria modificação legal que houve na chamada lei anticrime. O Supremo fez importantes delimitações também com relação à colaboração premiada. Lembro de um caso em que o ministro Ricardo Lewandowski não homologou um acordo que estava prevendo uma progressão para um regime inexistente, e também de um voto brilhante do ministro Dias Toffoli sobre a impossibilidade de receber denúncias só com base nos elementos unilaterais do delator. Houve avanços nesse enfrentamento da colaboração durante a “lava jato”.
Fonte: Conjur