País festeja a moeda, acrítico, há 30 anos – e não vê o essencial. Ela debelou a inflação, mas abriu as portas para um padrão ainda mais grave de dependência — financeirizado, desigual e em regressão produtiva. Dele não nos livramos até hoje
por Luiz Filgueiras – Segunda 1 de julho de 2024
No dia 1º de julho próximo o Real fará trinta anos de existência; mas o Plano de Estabilização que criou e deu vida a essa moeda, denominado inicialmente como Plano FHC e posteriormente como Plano Real, foi instituído em dezembro de 1993 com o anúncio de um “ajuste fiscal”, seguido pela criação da URV (Unidade de Referência de Valor) em fins de fevereiro de 1994 e, finalmente, o surgimento da nova moeda (o Real) no início do mês de julho.
Mas esse Plano não foi simplesmente um Plano de Estabilização monetária, de controle da inflação; apesar de, em geral, ser visto e compreendido como tal, mesmo entre a maioria dos economistas, que destacam, sobretudo, o seu sucesso no combate à escalada dos preços – após o fracasso de quatro Planos anteriores: o Cruzado (1986), o Novo Cruzado ou Bresser (1987), o Verão (1989) e o Collor (1990). Com isso, coloca-se na sombra: 1- as suas consequências conjunturais e estruturais para o conjunto da economia brasileira; e 2- o seu papel mais abrangente na transformação mais recente do capitalismo brasileiro.
No primeiro caso, não se evidencia e muito menos se destaca o impacto devastador que o Plano Real e sua política macroeconômica teve sobre todas as demais variáveis (dimensões da economia brasileira) para além da inflação: deterioração das contas externas do país (Balança Comercial e de Serviços, Transações Correntes), crescimento das dívidas externa e interna, piora das contas públicas (Déficit Púbico), estagnação econômica e aumento do desemprego, e desnacionalização da economia. Em suma, vulnerabilidade externa (Balanço de Pagamentos) e fragilização interna (Finanças Públicas).
Além disso, obscurece-se o seu papel político crucial na eleição de FHC para Presidência da República, ocorrida no início de outubro de 1994 – três meses após a implantação da nova moeda -, e, o mais importante, o fato de Dio Plano Real ter sido peça-chave na integração do capitalismo dependente brasileiro ao novo regime de acumulação mundial (capitalismo financeiro mundializado) que então se constituía, ajudando a consolidar no Brasil a transição entre dois Padrões de Desenvolvimento Capitalista: do Padrão de Desenvolvimento de Substituição de Importações (PDSI) ao Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico (PDLP).
Esse texto recupera todas essas dimensões, “esquecidas”, do Plano Real e evidencia a “camisa de força” que aprisionou o país em uma trajetória de baixo crescimento econômico e domínio das finanças, com a apropriação do Estado por um bloco no poder que, com uma ou outra inflexão, tem, desde então, a hegemonia do capital financeiro nacional e internacional. Em particular, o texto destaca a nova forma de dependência constituída a partir de então, bem como as principais características do novo Padrão de Desenvolvimento Capitalista (Liberal-Periférico).
Além dessa Introdução e da Conclusão, ele é constituído por mais quatro seções, denominadas: 1- Conjuntura Internacional: constituição de um novo regime de acumulação; 2-Conjuntura Nacional: a crise do PDSI e a transição para o PDLP; 3- O Plano Real: muito além de um Plano de Estabilização; e 4- O Novo Padrão de Desenvolvimento: PDLP.
1- Conjuntura Internacional: constituição de um novo regime de acumulação
Na década de 1990 o capitalismo, no plano mundial, estava consolidando, a partir dos países imperialistas, uma nova forma de existência, expressa em um novo regime de acumulação, agora sob a hegemonia das finanças. Resultante de grandes transformações derivadas da conjunção de três fenômenos de natureza econômica e política, quais sejam: a reestruturação produtiva, a mundialização-financeirização do capital e a ascensão político-ideológica do neoliberalismo, essa nova forma de existência do capitalismo substituiu o regime de acumulação fordista – que vigorou desde o pós-2ª Guerra até os meados dos anos 1970.
A reestruturação produtiva, iniciada nos países centrais na década de 1970, e posteriormente difundida para a periferia, foi a resposta do capital à desaceleração da produtividade do trabalho e à redução da taxa de lucro – constituindo-se em uma grande transformação sociotécnica-produtiva, com a introdução de novas tecnologias (3ª revolução tecnológica) e de novas formas de gestão da produção e do trabalho (parte delas oriundas do denominado “Modelo Japonês” ou “Toyotismo”: just-time, terceirização, um novo tipo de participação da força de trabalho no processo produtivo etc.).
Como resultado dela, a relação capital-trabalho sofreu uma forte alteração, em razão do aumento do desemprego estrutural (“enxugamento das empresas”) e do enfraquecimento dos sindicatos, que mudaram a correlação de forças em detrimento do trabalho. Na periferia do capitalismo esse processo iniciou-se na segunda metade dos anos 1980, aprofundando-se nas décadas seguintes. Nessas transformações o capital financeiro teve papel fundamental, ao impor a sua lógica volátil à esfera produtiva, pressionando as empresas a reduzirem o seu quadro de funcionários e apresentarem resultados econômico-financeiros de curto prazo – colocando os interesses imediatos dos acionistas como prioritários.
Por sua vez, o processo de mundialização-financeirização do capitalismo iniciou-se ainda no início dos anos 1970, quando a ordem financeira internacional de Bretton Woods começou a ser desmontada unilateralmente pelos EUA, com o fim do sistema dólar-ouro que regulava as relações comerciais e financeiras desde o pós-2ª Guerra. Desde então, as restrições à livre movimentação do capital financeiro foram sistematicamente retiradas, levando ao apagamento das fronteiras entre os diversos tipos de mercados financeiros, ao surgimento de novos agentes financeiros (investidores institucionais como os fundos de pensão, fundos de investimento, seguradoras etc.) e novos instrumentos de acumulação financeira (genericamente englobados em todos os tipos dos chamados “derivativos”).
Nesse processo, a partir dos anos 1990, os países periféricos foram incorporados como plataformas de acumulação para o capital financeiro, através da securitização de suas respectivas dívidas públicas, obrigados a abrirem os seus mercados comerciais e financeiros, e tendo as suas políticas macroeconômicas tuteladas e condicionadas, quando não subordinadas, ao movimento especulativo e volátil de curto prazo dos capitais internacionais. Nessas novas circunstâncias, o fundo público passou a ser apropriado e controlado pelo capital financeiro, através das políticas de ajuste fiscal permanente, instrumento de transferência de renda das populações para uma reduzidíssima minoria de detentores da dívida pública. Do ponto de vista macroeconômico, a instabilidade exacerbou-se e as crises cambiais sucederam-se, primeiro na periferia e depois, quando da crise geral de 2008, no centro do sistema, difundida a partir dos EUA.
Por fim, a ascensão político-ideológica do neoliberalismo (construção teórica desenvolvida nas décadas de 1930 e 1940), consolidada com as eleições de Margareth Tatcher na Inglaterra (1979) e Ronald Reagan nos EUA (1980), após uma primeira experiência na ditadura de Pinochet no Chile (1973), expressou, no plano político, a derrocada do Estado de Bem-Estar Social e a radical mudança na correlação de forças capital-trabalho em desfavor do segundo. Isso se expressou em reformas e políticas que modificaram a forma de articulação do Estado com o processo de acumulação, privatizações de empresas públicas, desregulamentação das relações trabalhistas, liberalização das relações comerciais e financeiras, redução dos regimes de Previdência e Assistência Social e repressão aos sindicatos.
Compreendido como uma ideologia, uma política econômica e/ou uma nova forma de racionalidade, o neoliberalismo passou a dominar todas as instâncias da vida econômicosocial, pautando o comportamento das economias, dos governos, das empresas, Instituições e das famílias e pessoas em geral. Intrinsecamente articulado com os processos de reestruturação produtiva e financeirização, tem como ponto central a defesa do mercado, do capital em geral e do capital financeiro em particular, com a promoção da sua liberdade total de movimento e de seus valores (individualismo, concorrência em todos os âmbitos, empreendedorismo etc.).
O resultado mais geral dos três processos acima descritos, que constituíram o capitalismo contemporâneo, pode ser resumido como o advento da acumulação flexível, isto é, total liberdade de movimento do capital, com a flexibilização de todas as esferas e dimensões da acumulação de capital: flexibilidade espacial e temporal (comercial-financeira), flexibilidade produtiva (máquinas de comando numérico e trabalhador polivalente) e flexibilidade-desregulação do mercado de trabalho (extinção de direitos sociais e trabalhistas).
Os impactos sobre as relações capital-trabalho foram profundos: salto no desemprego estrutural, precarização do trabalho de várias formas (que tem na “uberização do trabalho” o seu ápice atualmente), destituição de direitos trabalhistas e sociais, crise dos sindicatos e forte diferenciação da classe trabalhadora. No âmbito mais amplo da sociedade, acirraram-se a instabilidade, a incerteza e a insegurança; com o aumento da pobreza e da exclusão social, e o retorno a um elevadíssimo grau de concentração de renda existente no pré-2ª Guerra Mundial, mesmo nos países centrais, em especial os EUA. E, na esfera política, o pior de tudo: o retorno do fascismo na esteira do fracasso do establishment (a direita neoliberal e os partidos socialdemocratas cooptados para a agenda da direita) em responder aos problemas e os anseios da maioria da população, expressando uma crise profunda de representação e da democracia liberal.
2- Conjuntura Nacional: a crise do PDSI e a transição para o PDLP
No âmbito interno, o Brasil pré-Real, em toda a década de 1980, conviveu com a crise terminal (estrutural) do Padrão de Desenvolvimento de Substituição e Importações (PDSI), expressa na chamada “crise da dívida” (determinada por dois “choques do petróleo e, principalmente, pela elevação da taxa de juros dos EUA em 1979) – que abarcou toda a periferia mundial e em particular a América Latina -, no fenômeno da estagflação e no estrangulamento externo. A segunda razão foi particularmente trágica para o aumento (e autonomização) da dívida externa, em um contexto no qual os contratos entre credores e devedores estabeleciam a cláusula de taxas de juros flutuantes.
Na primeira metade dessa década, fase final da Ditadura Militar, o governo, subordinado ao FMI, adotou o chamado “Enfoque Monetário do Balanço de Pagamentos”, que respondeu diretamente aos interesses dos credores da dívida externa. Essa política, ao priorizar a obtenção de elevados saldos na Balança Comercial, através da desvalorização sistemática (maxi e mini) da moeda nacional e da redução dos gastos públicos, produziu duas fortes recessões (1981 e 1983) e acelerou o crescimento das taxas de inflação, que saíram completamente fora de controle. Ao mesmo tempo, as dívidas públicas, interna e externa, dispararam, com a deterioração das finanças do Estado. A estagflação produzida por essa política enfraqueceu de vez a Ditadura Militar.
Na segunda metade dos anos 1980, já com a restauração democrática, a política ortodoxa da Ditadura deu lugar a sucessivos Planos de Estabilização, que fracassaram no combate à inflação, por razões internas e externas. Os três primeiros (Cruzado, Bresser e Verão) tinham um diagnóstico semelhante correto, o de que a inflação do período tinha um componente inercial fortíssimo e, para enfrentá-la, se utilizaram do mesmo procedimento (equivocado), qual seja: o congelamento de preços e salários.
A passagem abrupta da velha para a nova moeda sempre traz as pressões inflacionárias previamente existentes, que se manifestam aberta e imediatamente após o término dos congelamentos. A razão disso não é difícil de entender: todo congelamento, quando decretado, sanciona as assimetrias de preços previamente existentes, favorecendo alguns setores da economia (que acabaram de reajustar seus preços) e prejudicando outros (que estavam na eminência de reajustarem os seus preços e foram pegos de surpresa). O resultado é sempre o mesmo, desabastecimento e/ou comercialização dos produtos com ágio (ilegalmente, por fora do tabelamento oficial).
Mas a questão central do fracasso desses Planos, todos executados na 2ª metade dos anos 1980, foi a ausência de liquidez internacional (prevalecente em toda a década), derivada da já mencionada elevação da taxa de juros nos EUA em 1979 (política do dólar forte para restaurar a competitividade de sua economia), e que levou reiteradamente ao estrangulamento externo dos países periféricos. Além disso, a crise estrutural do PDSI, iniciada pela crise de seu padrão de financiamento (apoiado no Estado e no endividamento externo), foi interpretada e tratada como se fosse uma crise conjuntural. Por isso, nem a ortodoxia apoiada pelo FMI nem a heterodoxia que acreditava no combate à inflação com crescimento econômico, conseguiram superar os dois problemas centrais da economia brasileira: o estrangulamento externo e a inflação.
O último Plano, antes do Plano Real, elaborado e executado no início da década de 1990, independente de seus equívocos e de ter também fracassado no combate à inflação, expressou o ápice da disputa política entre as várias frações do capital e da burguesia – que vinha se desenrolando durante toda a década anterior -, com a vitória daquela associada ao imperialismo e identificada com o programa político-econômico neoliberal: abertura comercial e financeira, desregulação da economia e privatizações das empresas estatais.
Por isso, o Plano Collor, para além do combate à inflação – através de um drástico “enxugamento da liquidez” da economia, com o sequestro momentâneo de parte da riqueza financeira existente nas instituições bancárias: depósitos, cadernetas de poupança, todos os tipos de fundos de investimento etc. -, preconizava e iniciou a abertura comercial-financeira (queda das alíquotas de importação), desregulamentação de um conjunto de atividades e setores econômicos (fim da reserva de mercado para os capitais nacionais, com a entrada de capitais estrangeiros) e privatizações de empresas estatais.
Naquele momento, o país, o último na América Latina a assumir o neoliberalismo, estava iniciando a sua passagem do PDSI para o PDLP, superando a crise de hegemonia política que atravessou toda a década de 1980. Portanto, antes do Plano Real, o Plano Collor já trazia um conteúdo que ia muito além de um plano de estabilização. Contudo, diferentemente do primeiro, não teve sucesso na sua forma tosca de combate à inflação (“sequestro das poupanças”); o que foi decisivo para efetivação do impeachment do Presidente da República.
Mas a tentativa autoritária, de caráter bonapartista, de Fernando Collor de Mello, de comandar, sem negociar, a transição do país para o neoliberalismo, foi atropelada, sobretudo, em razão da disputa que ainda se travava entre as várias frações do capital, com relação às características que definiriam o novo Padrão de Desenvolvimento em gestação, em especial as divergências com relação à abertura da economia (o seu grau e a sua temporalidade). Essa negociação seria levada a cabo pelo governo Itamar Franco, tendo como condottiere FHC, através da elaboração e execução do Plano Real.
3- O Plano Real: muito além de um Plano de Estabilização
O Plano Real nasceu como Plano FHC em dezembro de 1993, evoluindo em um processo constituído por três etapas sucessivas. Inicialmente anunciou-se um “ajuste fiscal” que, na realidade, como constatado posteriormente, não teve nenhum papel no combate à inflação. Nesta primeira etapa o importante foi a criação de um instrumento denominado de Fundo Social de Emergência (FSE) que, de fato, não era nem social nem de emergência; mas um Fundo a disposição do governo constituído pela desvinculação de 20% das receitas da União (antes destinadas obrigatoriamente a Saúde e Educação), para gastar conforme o seu livre arbítrio. Posteriormente, o nome desse Fundo mudou para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, mais adiante, passou a ser chamado de Desvinculação das Receitas da União (DRU); este último expressando, de fato, o real significado e conteúdo do fundo.
Na segunda fase, criou-se em fins de fevereiro uma espécie de superindexador, denominado URV (Unidade de Referência de Valor), uma “quase moeda” (que cumpriu as funções de unidade de conta e reserva de valor, mas não de meio de troca, pois não tinha curso legal2), que viria a se constituir então no instrumento fundamental de combate à inflação inercial, possibilitando a passagem da velha para a nova moeda sem o congelamento de preços e salários e, portanto, sem levar as pressões inflacionárias previamente existentes para a nova moeda.
Quando de sua criação, o valor de uma URV equivalia a um Cruzeiro Real; esse valor passou a ser corrigido diariamente de acordo com, aproximadamente, a variação da média de três índices de preço (o IGPM da Fundação Getúlio Vargas, o IPCA do IBGE e o IPC da FIPE). Essa correção, na época, era similar à correção sofrida pelo valor do dólar, o que significa dizer que, já nesse momento, antes mesmo do surgimento da nova moeda, foi instituída a “âncora cambial” que viria acompanhar a nova moeda e que se constituiria no mecanismo fundamental do Pano Real para controlar o processo inflacionário.
Portanto, a partir daí, os preços e salários que fossem estabelecidos em URV manteriam o seu valor real, variando diariamente de acordo com a variação da inflação. No entanto, inicialmente só os preços administrados e definidos pelo governo (energia, telefonia, água, impostos, taxas etc.), além dos salários de toda a economia passaram a ser cotados em URV. Os preços do setor privado, de acordo com o livre arbítrio dos empresários, só foram transformados em URV à véspera do lançamento da nova moeda.
A última fase (dia 1º de julho de 1994) foi a transformação da URV na nova moeda, o Real. Operação realizada três meses antes da eleição para presidente da República, foi decisiva para a vitória de FHC. Até à véspera da entrada em vigor da nova moeda, o candidato Lula da Silva era franco favorito (quando a inflação mensal chegou a 42%); no início de agosto as pesquisas já apontavam um empate técnico entre esses dois candidatos; no começo de setembro FHC já ultrapassava Lula da Silva; um mês depois, na eleição realizada no dia 03 de outubro, FHC venceu no primeiro turno, tornando-se o novo presidente da República para o período 1995-1998.
A partir da nova moeda (Real) as taxas de inflação despencaram imediatamente, com alguns índices chegando a apontar deflação, isto é, redução média nominal de preços. Além de a URV ter cumprido o papel de eliminar a inflação inercial, a deflação decorreu do fato dos empresários terem reajustado os seus preços de forma artificial, antes de transformá-los em URV na véspera do dia 1º de julho. Desse modo, quando foram transformados de URV para Real, conforme a paridade de um para um, esses preços, inflados preventivamente, não conseguiram ser sustentados pelos empresários e, assim, tiveram que ser reduzidos, agora na nova moeda.
Na sequência, diferentemente dos planos anteriores, a inflação não retornou com o passar dos meses, por duas razões: 1- Promoveu-se uma queda generalizada das alíquotas de importação, estimulando-se a aquisição de produtos estrangeiros e acirrando-se a competição intercapitalista. 2- Adotou-se uma política de sobrevalorização do Real, mantendo-se sua paridade real (estabilidade) em relação ao dólar, que foi fixada inicialmente em um para um – variando posteriormente nominalmente, mas sempre mantendo-se a sobrevalorização; com isso, reforçou-se o estímulo às importações.
Na prática estabeleceu-se uma “âncora cambial” que sustentou a estabilidade da nova moeda durante quatro anos, mas que só foi possível porque o mercado financeiro, nos anos 1990, tinha voltado a ter grande liquidez – embora de outro tipo, diferente do ocorria nos anos 1970. Em vez dos empréstimos tradicionais de longo prazo, a nova liquidez era constituída por capitais de curtíssimo prazo, extremamente voláteis, que passaram a entrar no país para aquisição de títulos da dívida pública securitizada, atraídos por elevadas taxas de juro, muito acima das praticadas internacionalmente. E também para especular com ações na Bolsa de Valores.
Desde então, o país se integrou definitivamente ao novo regime de acumulação financeirizado-mundializado; mas para isso foi necessário a retirada de uma série de empecilhos institucionais (abertura financeira) que permitiu engatar o mercado financeiro nacional ao mercado financeiro internacional. Desse modo, o país, através de sua dívida pública, passou a ser mais uma plataforma de acumulação financeira no âmbito mundial.
As consequências da execução do Plano real e de sua política macroeconômica, em especial a monetária e a cambial, foram desastrosas para a estrutura e dinâmica da economia brasileira; de forma sintética: aprofundou a vulnerabilidade externa do país (com a instituição de uma nova dependência) e fragilizou o Estado e as finanças públicas – conforme detalhado a seguir.
A abertura comercial, associada à sobrevalorização do Real, colocou o país na rota de uma crise cambial, produzindo déficits crescentes nas Balanças de Comércio e Serviços e, por consequência, déficits também crescentes na conta de Transações Correntes. Para sustentar e prolongar essa situação, adiando a crise cambial anunciada, lançou-se mão de uma política monetária de permanentes juros altos e de um Programa de Privatizações (que passou a permitir a participação de capital estrangeiro). Com isso, acentuou-se o processo de desnacionalização de inúmeros setores da economia, limitou-se severamente o crescimento econômico, aumentou o desemprego e o déficit público, cresceu a dívida externa e estourou a dívida pública. Os números referentes a todas essas variáveis macroeconômicas, compilados em meu livro História do Plano Real, podem ser vistos nas fontes oficiais do governo: Banco Central, Ministério da Fazenda, IBGE etc.
Apesar de tudo, a possibilidade de uma crise cambial no Brasil, anunciada em três oportunidades consecutivas (crises do México em 1995, da Ásia em 1997 e da Rússia em 1998) tornou-se muito mais forte em 1998, último ano do primeiro Governo FHC e momento de nova eleição para a presidência da República. Para adiar o desenlace final, esse governo contratou um empréstimo ao FMI que aportou, em valores da época, US$ 40 bilhões – o que permitiu (uma vez) a reeleição de FHC, mas não impediu o fim da âncora cambial no início do ano de 1999, na esteira de um violento ataque especulativo contra o Real. Ela foi substituída pelo denominado “tripé macroeconômico” (metas de inflação, superávits fiscais primários e câmbio flutuante) que, com variações conjunturais, manteve-se até os dias de hoje.
Conclusão: o Plano Real, sustentado pelo novo regime de acumulação financeirizado-mundializado, deixou, no curto e longo prazo, uma herança terrível; mas cumpriu o seu objetivo fundamental de, com a queda da inflação, legitimar o aprofundamento e a consolidação no Brasil de um novo Padrão de Desenvolvimento Capitalista (Liberal-Periférico) articulado estreitamente com o novo regime de acumulação internacional – que drena permanentemente, sob a forma monetária-financeira, a riqueza do país, controla o Fundo Público, condiciona e subordina o conteúdo e a execução da política macroeconômica, impõe baixas taxas de crescimento da economia e mantém a trágica e histórica concentração de riqueza e renda que caracteriza o país. Nesse processo, também contribuiu fortemente, em razão das altas taxas de juros praticadas e da valorização do real, para a trajetória de desindustrialização precoce do país.
4- O Novo Padrão de Desenvolvimento: PDLP
A nova forma de dependência, conformada a partir dos anos 1990 com a contribuição fundamental do Plano Real e sua política econômica, expressou-se na constituição do Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico, que redefiniu a estrutura e dinâmica da economia brasileira. Produto de uma nova configuração do Bloco no Poder, que passou a ter a hegemonia do capital financeiro e da fração da burguesia associada ao imperialismo, o PDLP redefiniu as relações fundamentais da economia capitalista dependente brasileira.
A relação capital-trabalho foi profundamente afetada, pelo aumento do desemprego, a precarização do trabalho e a crise dos sindicatos, que alteraram fortemente a correlação de força dos sujeitos sociais, em prejuízo do trabalho. Com isso, implementaram-se sucessivas Reformas da Previdência e desregulamentou-se essa relação, através de vários mecanismos, mas principalmente pela implementação de uma Reforma Trabalhista abrangente que detonou a CLT.
As relações intercapitalistas foram reformatadas a partir da lógica da financeirização, que passou a orientar todas as atividades econômicas, e até das famílias, com a constituição de uma “economia da dívida”. A dominância do capital financeiro (seus interesses e a sua lógica) estabeleceu-se sobre todas as outras frações do capital e expressou-se em sua hegemonia no Bloco Político no Poder.
A nova inserção internacional, no contexto da divisão internacional do trabalho, aumentou a vulnerabilidade externa do país, criando uma nova forma de dependência: à tradicional “troca desigual” e dependência comercial-tecnológica, adicionou-se a dependência financeira (de novo tipo) e do conhecimento – derivada de sua apropriação privada e de seu monopólio pelos países imperialistas, em especial as Big-Techs dos EUA. À transferência de excedentes na forma de lucros, royalties e juros, veio acrescentar-se a renda-conhecimento.
O Estado foi redefinido na sua relação com o processo de acumulação de capital, reduzindo-se a sua capacidade de investimento e, com as privatizações de empresas estatais e o enfraquecimento de sua capacidade de executar as políticas públicas, perdeu o poder de reorientar a economia. Adicionalmente, com a sua fragilização financeira e subordinação ao capital financeiro, em especial para a rolagem da dívida pública, os serviços públicos passaram a perder qualidade. Por fim, sofreu uma reforma de caráter “gerencial” que, além de separar os servidores públicos concursados em carreiras “típicas” de Estado (uma minoria) e as demais (a grande maioria), introduziu generalizadamente, nesse segundo grupo, o processo de terceirização em seu interior, precarizando as relações de trabalho e visando quebrar a estabilidade dos servidores públicos.
Finalmente, do ponto de vista político, as forças sociais e partidárias sofreram um reposicionamento a partir dos anos 1990, com um deslocamento à direita. Parte majoritária da esquerda, o PT e suas áreas de influência, sofreu um processo de transformismo no qual abraçou pontos fundamentais da agenda neoliberal – mimetizando o que já ocorrera com a socialdemocracia europeia a partir dos anos 1980. Adicionalmente, a influência ideológica e dos valores neoliberais penetraram profundamente no conjunto da sociedade, impondo uma nova racionalidade aos sujeitos.
Embora tendo se mantido fundamentalmente o mesmo, o PDLP apresentou nuances ao longo dos seus 34 anos de existência, quando se observa e se compara o período dos governos de FHC com o período dos governos de Lula-Dilma. Os governos FHC promoveram ativamente as reformas e políticas neoliberais, enquanto os governos de Lula e Dilma, de forma passiva aceitaram a herança do período anterior, sancionando, mais do que aprofundando, esse Padrão de Desenvolvimento.
Além disso, alterações nas circunstâncias conjunturais internacionais, possibilitaram que os governos de Lula-Dilma flexibilizassem o Regime de Política Macroeconômico (RPM), especificamente denominado de Tripé Macroeconômico. O resultado disso foi um maior crescimento econômico e uma redução do desemprego; essa flexibilização, combinada com políticas sociais de vários tipos (renda mínima, cotas, salário-mínimo, moradia etc.) implicou em uma diminuição da pobreza absoluta e uma leve redução da concentração de renda, especificamente entre os rendimentos do trabalho. Em suma, no interior de um mesmo Padrão de Desenvolvimento existiram, em momentos distintos, diferentes Regimes de Política Macroeconômica.
Em resumo: o mesmo Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico conviveu nos últimos 34 anos com distintos Regimes de Política Macroeconômica, fortemente condicionados por diferentes conjunturas internacionais. A ideia, bastante difundida por parte majoritária da esquerda (o PT e o seu entorno), de que os governos Lula-Dilma haviam superado o “modelo neoliberal” e instituído um “modelo neodesenvolvimentista”, foi resultado de se confundir o PDLP (uma dimensão estrutural de longo prazo) com distintos Regimes de Política Macroeconômica (referentes a uma dimensão conjuntural). A rapidez com que os governos Temer e Bolsonaro desfizeram, total ou parcialmente, as conquistas obtidas pelos setores populares durante os governos de Lula-Dilma, assim como a anulação de todas as políticas e programas desses últimos, valem mais do que mil palavras – que as paixões políticas não conseguem desmentir.
Conclusão: legado e perspectiva
Desde a Crise da Dívida na década de 1980, seguida pelo Plano Real e a consolidação do PDLP nos anos 1990, o país foi tomado pelo crescente domínio político-econômico do capital financeiro; embora vivendo distintas conjunturas, mais ou menos favoráveis às forças políticas de esquerda e democráticas. Após o impeachment da presidente Dilma, a direita neoliberal retomou a iniciativa, trazendo de volta o tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuantes) em sua forma mais rígida e relançou uma nova rodada de reformas neoliberais (Reforma Trabalhista e mais uma Reforma da Previdência). O resultado foi o aprisionamento da política fiscal (Teto de Gastos, do governo Temer) e da política monetária (Banco Central independente, do governo Bolsonaro).
Na sequência, essa direita foi deslocada politicamente pela extrema direita (o neofascismo-bolsonarismo), com o país reproduzindo uma tendência mundial derivada da crise da democracia liberal. A razão fundamental dessa crise localiza-se, de um lado, na incapacidade da direita neoliberal responder às necessidades da maioria da população; muito pelo contrário, suas reformas e políticas só pioraram a situação econômica e social. De outro lado, as correntes socialdemocratas passaram – desde os anos 1980 nos países centrais e a partir da década de 1990 na periferia – por um processo de transformismo, incorporando partes fundamentais do ideário neoliberal. Essa situação, de ausência de perspectiva para a maioria (desemprego, pobreza, insegurança, incerteza, desespero etc.), e sem uma alternativa robusta mais à esquerda, abriu uma oportunidade para a extrema direita neofascista se apresentar como anti-establishment apesar de, ironicamente, defender e propor um neoliberalismo ainda mais radicalizado.
No Brasil, após quatro anos de destruição do Estado e desestruturação de todas as políticas públicas, conseguiu-se derrotar eleitoralmente o neofascismo. No entanto, na atual conjuntura, e tendo as limitações estruturais do PDLP, tratadas anteriormente, o 3º Governo Lula vem sendo impedido de implementar o seu programa, consagrado nas urnas, por forças político-sociais que podem ser identificadas de forma clara, quais sejam: o capital financeiro (“o mercado” ou o “pessoal da Faria Lima”); a direita neoliberal encastelada nos meios de comunicação e em diversas instituições do Estado; o movimento neofascista com expressão parlamentar (Camara e Senado); e mais especificamente o chamado “Centrão”, que busca “emparedar” sistematicamente o governo Lula – retirando-lhe parcelas importantes de poder na formulação e execução orçamentária, e na implementação de políticas econômico-sociais, achacando e chantageando o Poder Executivo cotidianamente – através da exigência de liberação de “emendas parlamentares” como condição para votar matérias de interesse do governo.
Esses sujeitos vêm tutelando o governo Lula, impedindo-o de colocar em prática o seu programa, constrangendo-o por meio de uma política monetária restritiva (com elevadas taxas de juros), executada pelo Banco Central independente do governo, mas não do “mercado”, e por uma política fiscal subordinada ao “Arcabouço Fiscal” que garante, mais uma vez, a remuneração parasitária do capital financeiro. Na verdade, desde a criação do “Teto de Gastos” no Governo Temer, formalizou-se uma situação de “ajuste fiscal” permanente. Em suma, o Fundo Público está formalmente sequestrado por uma parcela reduzidíssima dos muitos ricos, brasileiros ou não.
Nas atuais circunstâncias, o dito “Presidencialismo de Coalizão” tem, aos poucos, se transformado quase que em uma espécie de “Parlamentarismo de Coalizão”, um “mostrengo” ilegítimo e ilegal, pois não está previsto e nem é acolhido de forma alguma pela Constituição brasileira. Na prática, uma tentativa, já parcialmente bem-sucedida, de anular o 3º mandato que Lula da Silva recebeu da maioria dos eleitores brasileiros. Portanto, uma espécie de “estelionato eleitoral” praticado pelas forças político-sociais derrotadas na eleição para presidência da República de 2022.
Essa situação evidencia a existência, de fato, de uma correlação de forças desfavorável às correntes político-sociais de esquerda e democráticas, colocando o governo Lula em uma posição defensiva e desconfortável. Mas também é a evidência de que a resposta que o governo e seus apoiadores mais próximos têm dado a essa conjuntura adversa, isto é, restringindo-se apenas a uma prática de negociação no âmbito exclusivamente institucional, está inviabilizando o alcance dos seus objetivos econômico-sociais mais importantes, anunciados e defendidos no processo eleitoral de 2022.
Mas uma correlação de forças, qualquer que seja ela, não pode ser tratada como uma fotografia, algo estático e imutável; não pode servir de justificativa para aceitar a tutela que o governo Lula vem sofrendo. Ela tem que ser entendida como um filme, um processo em movimento, cujos desdobramentos não estão previamente definidos. Isso significa dizer que a alteração ou manutenção de uma determinada correlação de forças dependerá fundamentalmente da luta política travada no presente, em cada momento.
As forças de esquerda e democráticas, que têm uma longa tradição e experiência de mobilização popular, precisam sair da atual passividade, como que esperando que Lula, e o seu governo, bem como o STF, resolvam os impasses políticos. Por sua vez, Lula e o seu governo não podem ignorar o apoio popular que possuem, não podem recear mobilizar e estimular esse apoio.
Na realidade, a explicação para a existência da atual conjuntura de desmobilização deve ser buscada na prática e ação política atual, acomodada, das forças de esquerda e democráticas. Se essas forças não reconhecerem isso, o “monstro” do outro lado parecerá maior do que de fato é, e a possibilidade de uma vitória eleitoral da extrema direita em 2026 ficará cada vez mais crível.
A recente greve dos servidores (técnico-administrativos e professores) das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), além da defesa das Universidades e Institutos e da remuneração de seus trabalhadores (a defesa do trabalho decente), vai na contramão da passividade, apontando a importância da organização e mobilização das forças antifascistas e antineoliberais, e denunciando as forças políticas que vêm impedindo o governo eleito em 2022 em implementar o seu programa econômicosocial.
Reiterando: só se muda uma correlação de forças desfavorável se houver ações nesse sentido. O momento positivo de aprovação da PEC da Transição apoiou-se ainda na mobilização derivada do processo eleitoral, mas que aos poucos foi-se dissipando; é preciso retomá-la, exigindo uma nova postura tanto do governo Lula como também de todas as correntes políticas de esquerda e democráticas. Só assim poderá haver alguma alteração da correlação de forças mais favorável.
Com negociações estritamente no Plano Parlamentar e desmobilizando a sua base social, Lula e o PT conseguirão, no máximo, “garantir” as conhecidas “migalhas” para o andar de baixo e reforçar a dependência da trajetória (neoliberal) ou, na pior das hipóteses, abrirão as portas para o retorno do fascismo na eleição de 2026. Sem apostar na mobilização política efetiva de suas bases sociais, no sentido de promover ações para além do parlamento, que conteste a atual correlação de forças, pressionando-a para modificá-la, não há a menor possibilidade de conciliar “austeridade fiscal” com distribuição de renda e redução das desigualdades sociais.
1 Esse texto vai na forma de um Ensaio, sem citações bibliográficas. Quem tiver interesse em conhecer minhas referências, que embasam esse texto, podem encontrá-las nos meus livros História do Plano Real e “O Brasil nas Trevas: do golpe neoliberal ao neofascismo”, ambos editados pela Boitempo.
2 Para os adeptos da Moderna Teoria Monetária, a URV se constituiu em uma nova moeda indexada, pois compreendem que a função de “unidade de conta” é a decisiva para caracterizar uma moeda.
Fonte: Outras Palavras /