Reforma da Lei de Improbidade reafirma limites aos controladores

justiça

Por Maria Beatriz P.G. Johonsom di Salvo e Thiago Guimaraes de Barros Cobra – Domingo, 13 de novembro de 2022

Passado pouco mais de um ano da edição da Lei nº 14.230/2021, responsável por modificar a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), seus ditames continuam a inquietar a doutrina e fomentar a produção jurisprudencial do país. Conforme a justificativa do Projeto de Lei nº 2.505/2021 [1], do qual se originou a Lei nº 14.230/2021, a Lei de Improbidade Administrativa carecia de revisão para “sua adequação às mudanças ocorridas na sociedade e também para adaptar-se às construções hermenêuticas da própria jurisprudência, consolidadas em decisões dos Tribunais‘.

Referido artigo 17-D passou a estabelecer que a ação por improbidade administrativa:

“(…) é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.”

E o que mais nos interessa, seu parágrafo único passou a prever que:

“Ressalvado o disposto nesta Lei, o controle de legalidade de políticas públicas e a responsabilidade de agentes públicos, inclusive políticos, entes públicos e governamentais, por danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, à ordem econômica, à ordem urbanística, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos e ao patrimônio público e social submetem-se aos termos da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.”

O artigo 17-D e seu parágrafo único decorrem de proposta de emenda do Senado (emenda nº 5), a qual foi aprovada em Parecer da Comissão Especial, oportunidade em que se justificou:

“A Emenda nº 5 insere importante alteração ao estabelecer uma conceituação da Ação de Improbidade, de modo a apartar os regimes de tutela do interesse coletivo, em especial daquele próprio das Ações Civis Públicas, tratados na Lei nº 7.347, de 1985. Julgamos importante tal alteração na medida em que evita a confusão dos regimes aplicáveis na defesa da probidade daquele próprio para a proteção do interesse coletivo” [2].

Em que pese a motivação da emenda decorrer da preocupação do legislador em positivar a natureza da ação de improbidade administrativa, é certo que as disposições também impactam os instrumentos ou vias processuais de revisão de atos de gestão pública, na tutela de interesses coletivos.

Nesta perspectiva, a ação de improbidade administrativa, regida pela Lei nº 8.429/1992, passou a ser de uso restrito de seus legitimados, exclusivamente para sancionar, em caráter pessoal, os destinatários da Lei de Improbidade Administrativa, sendo expressamente vedado o uso dessa ação como método de controle da gestão de políticas públicas, conduta a ser investigada por meio da ação civil pública regulamentada pela Lei nº 7.347/1985.

Logo, com a introdução do artigo 17-D e seu parágrafo único, a finalidade da ação de improbidade administrativa passa a ser a repressão e a sanção específica dos atos ímprobos tipificados na Lei nº 8.429/1992, destacando a doutrina que o seu exercício em caráter antecipatório e a comunicação ao agente público de que conduta por ele eleita desencadearia o exercício da ação de improbidade, se mostram antijurídicas [3].

Em verdade, o que se verifica da intenção do legislador, por meio da leitura do Projeto de Lei nº 2.505/2021, é a preocupação em distinguir o ato ímprobo do equívoco, do erro ou da omissão decorrente de uma negligência, uma imprudência ou uma imperícia do gestor, condutas essas que devem ser apuradas pelos órgãos de controle interno e externo considerando as disposições da nova LINDB, notadamente o seu artigo 22.

A Agenda Anticorrupção, que mobilizou Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas e Controladorias em defesa da moralidade e transparência na gestão pública acabou por promover um alargamento de suas competências e atividades, focadas em um controle abertamente repressivo, orientado à punição do mau gestor. Todavia, os excessos (sem falar em usos políticos destes órgãos de controle) ocasionaram a intimidação de gestores públicos (dos bons gestores, inclusive) e a brusca redução de sua discricionariedade.

O que se depreende deste movimento legislativo inaugurado pela Lei nº 13.655/2018 e complementado pela Lei nº 14.230/2021 é uma resposta ao hiperativismo do controle da gestão pública e a busca de um remédio aos danos que a paralisia infligida aos gestores públicos causou ao Estado e à sociedade.

De fato, a incorporação do pragmatismo jurídico ao ordenamento, sobretudo no direito administrativo sancionador, representa a reafirmação das competências dos gestores e controladores, a fim de que cada órgão do Estado e seus agentes possa desempenhar plenamente suas atribuições, sem que ocorra sobreposição e coação entre as atividades de cada um.

Se no primeiro momento, a Lei nº 13.655/2018 buscou promover, de forma mais ampla, uma mudança de paradigma sobre a própria forma do gestor público ser enxergado pelo ordenamento, submetendo-o um regime jurídico que o pressuponha honesto e prestigie sua atividade [4], a nova formatação da Lei de Improbidade Administrativa trazida pela Lei nº 14.230/2021 reforça esta distribuição de competências e atribuições, e evidencia limites aos controladores, ao vedar o uso irrestrito da figura da improbidade com o propósito indireto de controle de legalidade de políticas públicas, e restringir as hipóteses de responsabilização por improbidade a uma concepção mais estrita, não relacionável a escolhas e eventuais erros.

Espera-se, assim, o aprimoramento da eficiência de gestão e de controle, exercidos da forma, em momento e pelos agentes adequados. A atualização legislativa não transforma da noite para o dia a cultura dos gestores e dos órgãos de controle, mas lhes confere instrumental e parâmetros para que a atividade de ambos seja exercida de forma equilibrada, por meio de melhor fundamentação das decisões, segurança jurídica, participação social, accountability e governança.

Há uma constante tensão e disputa por poder entre os próprios Poderes do Estado e também com os órgãos de controle. Assim, é salutar a periódica revisão dos mecanismos de freios e contrapesos, e dos arranjos e relações institucionais. Espera-se, entretanto, que esta nova formatação seja capaz de combater a paralisia das canetas da administração pública sem causar a paralisia dos órgãos de controle.

Esse equilíbrio institucional será essencial para que o Brasil retome seu potencial desenvolvimentista, com gestores legitimados a empreender transformações no Estado e na sociedade, que vêm incorporando tecnologias que desafiam lógicas tradicionais, e com controladores que exerçam seu papel dentro das regras do jogo, atentos à segurança jurídica e à moralidade administrativa, mas também às consequências práticas de suas atividades nos rumos do Estado, da economia e de direitos.


[1] Projeto de Lei nº 2.505/2021, de autoria do deputado Roberto de Lucena. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node012u0hfofuuphxvw1yyy6j1q5s12078259.node0?codteor=1687121&filename=Tramitacao-PL+2505/2021+%28N%C2%BA+Anterior:+pl+10887/2018%29. Acesso em: 28 out 2022

[2] Parecer proferido em Plenário às emendas do Senado Federal ao Projeto de Lei nº 2.505/2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node012u0hfofuuphxvw1yyy6j1q5s12078259.node0?codteor=2084914&filename=Tramitacao-PL+2505/2021+%28N%C2%BA+Anterior:+pl+10887/2018%29. Acesso em: 20 out 2022

[3] Neste sentido, conferir: JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da lei de improbidade administrativa comentada e comparada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. 1ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

[4] Neste sentido, conferir: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras. O artigo 28 da nova LINDB: um regime jurídico para o administrador honesto. Consultor Jurídico, 25 maio 2018. Disponível em: www.conjur.com.br/2018-mai-25/opiniao-lindb-regime-juridico-administrador-honesto. Acesso em: 29 out 2022.

Fonte: Conjur

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *