Linguagem simples ou técnica no Poder Judiciário: um verdadeiro dilema?

Brasil justiça

Tiago Gagliano Pinto Alberto – Sábado, 9 de março de 2024

Nas últimas semanas, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF e do CNJ, vem defendendo, em uma série de eventos públicos, a necessidade da adoção de linguagem simplificada nos atos decisórios oriundos do Poder Judiciário. Em recente ato promovido pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Sua Excelência assim se manifestou:

É preciso parar com esse negócio de achar que quem fala complicado é inteligente. Geralmente, quem fala complicado não sabe do que está falando. Nós já temos problemas graves no direito, que é uma terminologia por muitas vezes muito esquisita. Nós somos capazes de dizer coisas do tipo: no aforamento, havendo pluralidade de enfiteutas elege-se um cabecel. É feio demais. Já temos embargos infringentes. Tem mútuo feneratício. Me perdoem, mas parece uma posição do Kama Sutra (AGÊNCIA ESTADO, 2024).

A fala do ministro vem na mesma linha do Pacto Nacional pela Linguagem Simples lançado pelo Conselho Nacional de Justiça, que conta com cinco eixos: (a) simplificação da linguagem nos documentos; (b) brevidade nas comunicações; (c) educação, conscientização e capacitação; (d) tecnologia da informação; e (e) articulação interinstitucional e social.

Tirante os objetivos contidos nos itens (b) a (e), concentremo-nos no item (a), consistente na simplificação da linguagem nos documentos, e que ostenta os seguintes subitens: (i) fomento ao uso de linguagem simples e direta nos documentos judiciais, sem expressões técnicas desnecessárias; (ii) criação de manuais e guias para orientar os cidadãos sobre o significado das expressões técnicas indispensáveis nos textos jurídicos.

Considerando os aspectos identificados como cruciais para a adoção de uma linguagem mais acessível nos documentos do Poder Judiciário, avaliemos a necessidade e a justificativa para o uso de terminologia técnica; e, se for o caso, em que extensão essa necessidade se manifesta.

Inicialmente — e em homenagem à linguagem simples, vamos realçar a importância de linguagem técnica específica, ilustrada pelos exemplos a seguir:

(a) um médico, conversando com o outro sobre o seu paciente, assim destaca: “Então, estou te enviando um paciente que tem um carocinho na altura da garganta. Ele é grandinho, tem uma forma de bolinha e, quando apalpado, gera uma sensação de dor ao paciente”;

(b) um engenheiro conversando com o outro: “Olha, a obra que estamos lidando é bem complexa. Aquela ponte tem que ficar bem alta, encostando no céu, e precisa utilizar algum material que grude bem, além do que os espaços entre as vigas precisam ficar mais ou menos separados”;

(c) um odontologista conversando com outro: “Estou te encaminhando um paciente que tem alguma coisa em um dos dentes. Está escuro, gera dor e, pelo que vi, tem um buraco entre dois dentes de igual tamanho”.

Estes diálogos seriam impensáveis no contexto da comunicação de conhecimentos entre profissionais capacitados, fundamentada em princípios científicos. Isso se deve ao papel essencial da linguagem técnica em simplificar a complexidade.

Por exemplo, ao se referir a uma condição como varicela, e não catapora, o médico define com precisão a doença em questão, descrevendo suas características específicas, sintomas e opções de tratamento. A intenção por trás do uso de terminologia técnica não é a de excluir aquelas pessoas situadas fora do campo médico, mas sim a de proporcionar aos profissionais da mesma área uma definição exata e clara da condição sob análise.

Vejamos os ensinamentos teóricos sobre o tema

Em sua teoria dos sistemas sociais, Luhmann explora como os sistemas de comunicação utilizam a linguagem para reduzir a complexidade do mundo, permitindo que sistemas sociais operem de maneira mais eficiente. Suas ideias sobre a diferenciação funcional dos sistemas sociais são particularmente úteis para entender como a linguagem técnica atua dentro de domínios específicos (LUHMANN, 1998, p. 73-100).

Habermas discute a ideia de racionalidade comunicativa em sua teoria da ação comunicativa, onde a linguagem desempenha um papel central na coordenação da ação social e na negociação de significados. Embora não se concentre exclusivamente na linguagem técnica, suas ideias sobre a racionalidade e o uso da linguagem certamente podem ser utilizadas para discutir como a linguagem técnica contribui para a redução da complexidade (HABERMAS, 2012, p. 473-582).

Em suas obras, especialmente em “Investigações Filosóficas”, Wittgenstein aborda como o significado é derivado do uso da linguagem em contextos específicos. A noção de “jogos de linguagem” é deveras útil para explorar como a linguagem técnica cria contextos específicos de significado que simplificam a comunicação dentro de determinadas áreas do conhecimento (WITTGENSTEIN, 1998, p. 112-115).

Em “A Estrutura das Revoluções Científicas”, Kuhn discute como as comunidades científicas utilizam paradigmas, que são conjuntos de práticas e linguagens compartilhadas, para estruturar o conhecimento científico. Sua noção de paradigma pode ser adaptada para analisar como a linguagem técnica serve para estruturar e simplificar a comunicação dentro de comunidades e disciplinas específicas (KUHN, 2016, p. 115-140).

Andacht, em diversos trabalhos sobre semiótica, explora como os símbolos e a linguagem criam realidades e reduzem a complexidade, facilitando a compreensão humana do mundo (ANDACHT, s/p, Acesso em: 06 mar. de 2024). Da mesma forma, Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf postulam que a linguagem molda nosso pensamento e percepção da realidade, revelando-se uma interessante referência para discutir como a linguagem técnica não apenas simplifica, mas também molda nossa compreensão de conceitos complexos (PARRA, 1988, p. 9-16) [1].

Há, portanto, um objetivo para a utilização a linguagem técnica. Ao reduzir a complexidade de determinada temática, sabe-se de antemão os requisitos, características e nuances do instituto tratado. Analisando os exemplos mencionados pelo ministro, excluído o do antigo artigo 690 do Código Civil de 1916, porque não mais vigente (BRASIL, 1916, artigo 690):

(a) embargos infringentes: se essa expressão é mencionada de um operador do Direito ao outro, é possível delimitar antecipadamente as hipóteses de cabimento, suas características, prazo, requisitos, viabilidade recursal etc;

(b) mútuo feneratício: ao ser utilizada, a expressão denota a existência de um mútuo que, ademais, diferencia-se de outros contratos por suas características, limites, detalhes, nuances etc.

Mencionar embargos infringentes, ou mútuo feneratício, entre profissionais do Direito é, em comparação aos exemplos anteriores, falar da presença de um linfonodomegalia, distinguindo-o de um cisto tireoglossal quando se trata de um carocinho na garganta; ou a necessidade de um concreto armado e protendido no caso da ponte; e, ainda, uma desmineralização nos dentes provocada por ácidos, gerando uma cárie em um dente específico, ao invés de uma descrição sumária.

O alvo da linguagem é alcançado, com termos técnicos, entre profissionais da mesma área: todos se entendem e delimitam perfeitamente do que estão falando.

A linguagem técnica não é excludente, ou antidemocrática. Apenas é… Técnica. E a sua utilização auxilia na resolução de problemas relacionados ao ramo da ciência em que se situe a questão.

Isso não significa dizer, contudo, que deva haver uma disjuntiva entre a linguagem técnica e o acesso do cidadão à compreensão do seu conteúdo. Considerando que ao cidadão interessa saber, em todas as suas facetas, a lógica da decisão que o afeta, inclusive por figurar como um integrante da comunidade de fala, claro que alternativas devem ser pensadas, principalmente para potencializar o caráter democrático dos provimentos jurisdicionais.

Tal, contudo, não significa abolir, contemporizar, reduzir ou afastar a linguagem técnica, mas explicá-la, o que pode ser feito de inúmeras formas, sem prejudicar a sua utilização.

Menciono, à guisa de exemplo, a metodologia que adoto há anos nas decisões que profiro no exercício da função jurisdicional. Ao cabo da decisão, quando já resolvida a situação conflituosa, insiro o que denomino Anexo I no arquivo, traduzindo toda a fundamentação anteriormente utilizada e mencionando o que foi decidido. Eis dois exemplos:

A autora foi buscar os seus direitos na Justiça, porque o Réu não lhe pagou o que devia. Ele disse que não pagou, porque não tinha dinheiro. O juiz da cidade decidiu, então, que esse não era motivo para não pagar, já que ele se comprometeu anteriormente, de modo que a autora ganhou.
(…)
O processo chegou a uma fase em que estavam calculando quanto o réu deveria pagar ao autor. O juiz da cidade decidiu que o valor devido era igual à quantia estabelecida conforme o cálculo do réu. No entanto, o autor não concordou e apresentou um recurso para que o valor do débito fosse recalculado. Em outras palavras, houve uma confusão sobre quanto exatamente o réu deveria pagar. O juiz decidiu que precisava de uma pessoa especializada, chamada perito contábil, para calcular o valor corretamente, conforme os parâmetros estabelecidos na sentença. Um perito é alguém que se especializou e estudou muito sobre um assunto específico. Quando o juiz precisa de informações detalhadas em uma área que não conhece tão bem, chama um perito para ajudar. É como ter um especialista para explicar e esclarecer coisas importantes no caso. Assim, o perito traz seu conhecimento para ajudar o juiz a tomar decisões mais informadas. Depois do cálculo feito pelo perito, o juiz mudou de ideia e decidiu que o Réu não estava certo em relação ao valor do débito. Agora, o Autor receberá o pagamento de acordo com o cálculo feito pelo perito. Resumindo, a decisão do juiz foi alterada porque agora seguirão o cálculo feito pelo perito contábil.

Alternativas

Essa é, obviamente, uma alternativa. Outras podem ser pensadas, inclusive inserindo elementos visuais, como já realizado em algumas unidades do Poder Judiciário (MIGALHAS, 2024; CONJUR, 2024). Há, enfim, meios para traduzir a linguagem técnica utilizada nos atos decisórios judiciais, sem a necessidade de afastá-la, ou reduzir a sua utilização.

A prevalecer a compreensão da necessidade disjuntiva da radical e completa transformação da linguagem técnica em simples nos atos judiciais, talvez no tempo presente algo mude e efetivamente se verifique alguma alteração nos provimentos decisórios, mas, a médio e longo prazo, a situação retornará ao padrão anterior, facilmente explicado pelo fato de que a linguagem técnica não é feia, equivocada, antidemocrática, ou coisa de pessoas que se acham inteligentes, mas apenas técnica e, como tal, necessária à compreensão dos institutos jurídicos tratados em diálogo, escrito ou oral, entre técnicos da correspondente área de conhecimento.

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Referências:
ANDACHT, Fernando. A semiótica de Peirce e a ficção de Borges: uma teia de inquéritos espelhados no poder sígnico. Disponível em: https://static.casperlibero.edu.br/uploads/2015/03/01-Fernando-Andacht.pdf. Acesso em: 06 mar. de 2024.

BRASIL. Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em: 06 mar. de 2024.

HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Volume 1. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

https://www.cnj.jus.br/gestao-da-justica/acessibilidade-e-inclusao/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples/eixos/. Acesso em 06 mar. de 2024.

https://www.conjur.com.br/2022-jan-03/darci-visual-law-legal-design-provocam-revolucao-judiciario/. Acesso em: 06 mar. de 2024.

https://www.migalhas.com.br/quentes/401814/juiz-do-tre-ma-usa-visual-law-para-explicar-voto-em-processo. Acesso em: 06 mar. de 2024.

KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 12. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2013.

LUHMANN, Niklas. Sistemas Sociales: Lineamientos para una teoría general. Tradução de Silvia Pappe y Brunhilde Erker. México: Universidad Iberoamericana, 1998. p. 73-100.

PARRA, M. La hipótesis Sapir-Whorf. Forma y Función, (3), 9–16, 1988. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/formayfuncion/article/view/29488. Acesso em: 05 mar. de 2024.

UOL; CNJ. Informações sobre linguagem simples no judiciário e o termo de “juridiquês”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/03/04/barroso-compara-termo-de-juridiques-a-kama-sutra-ao-pedir-linguagem-simples-no-judiciario.htmhttps://www.cnj.jus.br/gestao-da-justica/acessibilidade-e-inclusao/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples/eixos/. Acesso em: 06 mar. de 2024.

WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Tradução de Marcos G. Montagnoli. Petrópolis: Vozes, 2013.

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[1] Essa é a conhecida hipótese Sapir-Whorf, segundo a qual há um condicionamento recíproco entre percepção e linguagem, com efeitos na cultura. Para um estudo acerca do tema: PARRA, M. (1988). La hipótesis Sapir-Whorf. Forma y Función, (3), 9–16. https://revistas.unal.edu.co/index.php/formayfuncion/article/view/29488 . Acesso em 05 mar. De 2024.

  • BraveTiago Gagliano Pinto Albertoé pós-doutor em Filosofia (Ontologia e Epistemologia) na PUC-PR. Pós-doutor em Psicologia do Testemunho na PUC-RS. Pós-doutor em Direito pela Universidad de León-Espanha. Pós-doutor em Direito pela PUC-PR. Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor em graduação e pós-graduação (lato e stricto sensu). Líder do Grupo de Pesquisa Direito e Mente, vinculado ao mestrado em Psicologia Forense da Universidade Tuiuti do Paraná. Juiz de Direito Titular da 4ª Turma Recursal do Poder Judiciário do Estado do Paraná.

Fonte: Conjur / (foto: Carlos Moura/SCO/STF.)

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